Eu era bem garoto quando aparava minha carapinha na barbearia do Dante na rua Fortaleza no bairro do Bexiga, lá pelos anos de 1947 ou 48.
O Dante, um ítalo-corinthiano, era uma figura que hoje chamaríamos de ‘estranho no ninho’. Fanático pelo alvi-negro do Parque São Jorge, era capaz de arrumar as maiores encrencas com os antigos palestrinos/‘parmeristas’, que não se conformavam com o fato de um paesano ser torcedor do maior inimigo, e, logo, tome catadupas de xingamentos em português, italiano e dialetos diversos, sempre de acordo com os resultados dos jogos entre Corinthians e Palmeiras, numa equação que acho melhor explicar: gozação era igual à resposta pesada, que evoluía para xingamentos onde as mammas eram frequentemente citadas pejorativamente; em seguida a esses prolegômenos orais, o couro roncava solto com eventuais clientes tentando tirar a navalha da mão do Dante enquanto os provocadores ou provocados desembestavam a correr em direção à Maria José, que ninguém é idiota pra ficar esperando ser retalhado pelo italiano furibundíssimo e olha que ele se “furibundava” por quaisquer dois mil réis! Aquela cabeça cheia de cabelos cheirando à Glostora ou à Quina Petróleo Juvênia era extremamente quente; provocar o homem não era uma boa idéia!
O salão do Dante era igualzinho a todas as barbearias da época: duas cadeiras Ferrante lado a lado e em frente à espelhos, uma estufa para aquecer toalhas de rosto que, diga-se de passagem, era mais um enfeite de parede do que um equipamento útil, creio até que nunca fora muito usada, algumas cadeiras comuns para se esperar a vez, uma pilha de revistas velhas: O Riso, O Governador, Noite Ilustrada, o Cruzeiro, Alterosa, Careta... Outrossim (opa!), informo que a barbearia ficava na Fortaleza, uma porta simples de frente a uma das entradas do ‘vilão’ (O ‘vilão’ era um grande cortiço que tinha duas entradas: pela Ruy Barbosa e pela Fortaleza e abrigava mais de 100 famílias. O local ainda existe hoje, mas sofisticou-se; não é mais cortiço, óbvio, é uma espécie de condomínio residencial; tem até nome pomposo: “Travessa dos Arquitetos”, chic, né?). Todo Bexiga sabia que o Dante era o maior ‘boca suja’ que Deus colocara no mundo, mas ninguém ligava, era tudo normal, pelo menos para ele!: - “Ecco! Io parlo palavró mesimo. Nasci ca boca chuja, porca miséria!”, dizia sempre que alguém reclamava de seus destemperos...
Tic, tic, tic...o pente separava os cabelos e a tesoura cortava aqui e ali e a conversa fluía, dizendo melhor, o monólogo comia solto: “ Us pessoar fala qui o Domenico da Guia é o milhó bequeira que ixisti, ma io non credo... inguar ao Grané num teve nem vai tê, Madonna mia... O Curintia era molto buono co Tuffy, co Grané, co Del Debbio...” , e tome histórias, lances, salames, brigas, causos e mais causos do futebol dos anos 20, 30 e 40... O Dante era um corintiano enlouquecido, sejamos sinceros...; morreu velhinho por volta de 1965, 66, numa fase em que o Corinthians não conseguia nada, títulos, vitórias retumbantes, nada, nada... ; deve ter morrido xingando.
O velho Dante veio à minha lembrança quando meu filho Júlio me presenteou com o DVD comemorativo do Centenário do Corinthians. Alguns jogos importantes foram filmados, inclusive um que acordou o velho barbeiro que dormia esquecido nos recônditos de minhas lembranças deslembradas: em 1929 o Corinthians disputou, creio, uma de suas primeiras partidas internacionais contra um time profissional italiano e venceu por 6 x 1 com 2 gols de Grané...
De repente voltei à minha infância no Bexiga num dia de muito calor. Estou sentado sobre uma tábua apoiada nos dois braços da cadeira de barbeiro. Meus pés estão soltos no ar – “num pisa nu istufamento qui e prá num chujá... dispois vem ôtro fregueis i chuja u rabu... num fica bem, né”? - e eu escuto pela milésima vez a descrição daquele longínquo jogo de 1929...
Setembro de 2010. Luzes apagadas na sala. O Júlio está configurando o DVD Player. Começa a reprodução. Estou vendo o Corinthians de 1929 numa TV de LCD de 56 polegadas em pleno século 21, 81 anos depois do fato ocorrido. Nó na garganta. Meu time entra em campo, olha lá o Tuffy, o Grané entra em campo sorrindo, Neco é aquele, será?
Estou vendo a minha São Paulo um ano antes da Revolução de 30.
Centenas de automóveis estacionados numa várzea cortada pela linha dos bondes que se dirigiam para o bairro da Lapa. Ao longe as ondulações da Serra da Cantareira. O Parque Antarctica lotado. Palhetas, bengalas, chapéus coco e gellot, ‘Theda’s Bara’ usando vestidos longos e chapeaux emplumados, sorrisos inocentes para a câmera que filmava... Meu pai, o velho Alcides, teria 17 anos na época. Estaria ele já em São Paulo, vindo da distante Conceição do Monte Alegre? Minha mãe, Dona Zezé, tinha 8 anos e ainda estava em São Manuel, cidade dos Barros e dos Melão, terra da dupla Tonico e Tinoco que ainda não eram ninguém. Eu? Eu nasceria 11 anos depois e mais tarde iria cortar cabelo na barbearia da rua Fortaleza...
A voz do Dante: - Quando o futebór terminô, vim vindo a pé da Pompéia até o largo do Piques, subi a Santantó e fui dormi. Nunca dormi tão gostoso, démo uma surra nus intaliano...
- Mas Dante, você é italiano! Não pode querer mal um time da sua Itália...
- Guarda..., na Itália io era italiano, mas tô no Brasile desde 1914 i no Brasile io sô brasiliano i corintiano, i num me importa os língua de trapo...
O Dante, com suas histórias, me fez admirar aqueles jogadores antigos, com seus longos calções de algodão, seus bonés e gorrinhos, seus bigodões, com suas chancas e com suas bolas de capotão. Jogadores que tinham nomes respeitosos: Imparato, Friedenreich, Amilcar, Grané, Del Debbio..., não havia os “inhos” da vida, os Ronaldinhos, os Marcelinhos, etc...
Grané, só vi você num relance, entrando em campo em 1929, num filmete de 40 segundos quando muito, mas você me fez lembrar um tempo em que um barbeiro do Bexiga contava suas façanhas com suas chancas de biqueiras metálicas... Quando vi o Corinthians de 1929 voltei a ser criança,... “minha mãe me deu dois mil e duzentos réis prá pagar o barbeiro e comprar um sorvete de palito na sorveteria do seu Giuseppe”...
Grané, sou seu fã ardoroso! Grazie, signore Dante, valeu!
Por Joaquim Ignacio de Souza Netto