quinta-feira, 8 de março de 2012

SÃO PAULO, UM SONHO

Não é preciso ter poderes não-normais, sobrenaturais, para saber-se que a cidade de São Paulo tem lá sua alma  e seus mistérios e que seus cidadãos mais representativos (fundadores, pessoas que historiaram  a cidade, intelectuais, músicos, acendedores de lampiões, escriptores, palhaços, tonys, motorneiros de bonde, vagabundos, sambistas,  todos são uma essência de uma vida vivida, que ninguém é fisicamente eterno, pelo menos até prova em contrário!), repito, que seus cidadãos mais representativos continuam velando e observando o crescimento, o progresso ou o retrocesso da urbe selvática pela qual se sentem responsáveis, seus curadores. Isto posto e entendido, vamos entrar de uma vez na fantasia, no 'bem que as coisas poderiam ser assim', mesmo porque já estamos demorando  a apresentar os personagens dessa narrativa que, apesar de terem todo o tempo da eternidade para continuar vivendo em seus diversos planos espirituais, em seus infinitos universos paralelos, paulistanicamente vivem apressados. Eles virão aleatoriamente, tudo é aleatório, nada é planejado, mesmo a chegada ou a não chegada desses personagens; eles virão se quiserem ...
Vamos nos imaginar dentro de um universo de personagens criados por diversos autores, personagens esses tipicamente paulistanos; para esse exercício de imaginação há que se executar alguns rituais para convocar alguns desses criadores e eu - desculpem - tenho lá os meus. O primeiro criador a chegar é Marcondes Machado que nos aparece trazendo sua criatura, "il signore Juó Bananere". Juó vem pela mão de seu autor, irônico, resmungando, olha para mim com olhar desconfiado, enterra o chapéu no cocoruto...
Blém, blém, a sineta do bonde Bela Vista que vem descendo a Santo Antonio; vem a 8, diminui a marcha e para no Largo do Piques. Os passageiros descem, entre eles Charles Miller e seus bigodes enormes. Outras pessoas sobem, entre elas dona Zezé, minha mãe; os tempos se misturam, se entrelaçam. Blém, blém, o bonde parte e se perde na neblina, os condutores cantando: "dim, dim, dim, dim, dim, dim; um prá Light, dois prá mim...
Neste momento, enquanto escrevo, sinto uma presença forte  interferindo em meu raciocínio, falando aos ouvidos de minha alma (e alma existe? e se existe, alma  tem ouvidos?)  ... Milhor atender, deixál-a se expressar antes que a cousa toda e minhas idéas se confundam e fique eu perdido, como Macunaima na procura ingente do muiraquitã, entrando e saindo de estados e situacções não previstas; deixemos o barco correr ao sabôr da vellocidade das águas do Lettes, afluente etéreo e mictológico do Anhemby-Tietê que vem banhando os Campos de Piratininga desde os tempos iniciais.
É o Senhor Tempo quem me leva pela mão; agora estamos fluctuando sobre uma cidade que é só luz; não sei para onde estamos indo. Para onde o Tempo está me levando? Vamos para aquela geléa luminenta como uma nuvem de pirilampos?
Poetar? Gósto!  Ora por quem sois! Por ventura duvidais de minha métrica?
Maravilhamentos? Quéro-os! Peremptoriamente!
Sei que o Tempo vai atender aos meus pedidos de maravilhamentos, porque ele corre na maior vula, me arrasta e nos arrasta.  Grito, gargalho: - Aqui del rey, aqui del rey!;  a vertigem continua, um Parque Shangay a pleno e por todo tempo, subidas e descidas.
Conheço aquele maciço de pedra, aquele perfil de montanha; todos os dias eu o vejo a partir da ponte do Pinheiros, como quem olha-olhando em direção à Lapa, mas está bem diferente com toda aquela floresta chegando até seu cimo pontiagudo; parece  ser o Jaraguá coberto com um manto feito de parte da Hilaea Paulistana; definitivamente é o Jaraguá, a floresta ainda não foi derrubada, olho para trás e vejo que as luzes de São Paulo deram às de vila diogo, sorvetearam-se; a massa gelatinosa que me envolvia e me levava, apagou-se... me vejo dentro de um mundo estranho e frio, gelado e nevoento. Garua.
Garua?
É, garua, cáspite!


Voz que poeteja:
"Quando eu morrer quero ficar
Quando eu morrer quero ficar
Não contem aos meus inimigos
Sepultado em minha cidade
Saudade!"
(palmas, muitas palmas! algumas lágrimas...)
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir
O joelho na Universidade
Saudade..."
O poeta se inclina para a platéa e agradece as palmas e as lágrimas.
A voz  esganiçada e pernóstica vai cessando, diminuindo sua intensidade; fica apenas a figura estática, estatual, de Mário, que nos olha com seu olhar  através das lentes de seus óculos de tartaruga arlequinal, madrigal, fenomenal, "um sorriso de mulata sestrosa no canto dos lábios", no dizer de Oswald de Andrade ... (ao fundo, ouvimos os primeiros acordes de Viola Quebrada...)
**********
Do âmago do Jaraguá, mais vozes, música de banda. Sinfonia
gritos da criançada, estereofonia:  
"Hoje tem marmelada?
Tem, sim sinhô!
Hoje tem goiabada?
Tem, sim sinhô!
E o palhaço? Quem é?
É ladrão de muié!!!"Alegria


Piolim, Arrelia, Espirro, Chicharrão levando Torresmo pela mão, dezenas de palhaços, rostos pintados, narizes de bolotas, acrobatas, Tony's, leões, elefantes, camelos, ponneys, carroças, anões, trapezistas voando sobre minha cabeça, tudo passando muito rapidamente, num borrão de cores, de luzes, de sons, num velocíssimo slow motion no céu do Paissandu. Cacofonia, policromia.


Castro Alves não vai às aulas na Academia?
 Vai para a casa das mulheres? Orgia;
Vai caçar no Bráz e toma um tiro acidental. Sabe que vai morrer por causa disso...Agonia
Lá vem Geraldo Filme, cuspindo de lado, terno completo e gravata, sapatos pretos lustrosos, assobiando seu último samba de enredo. Maravilha.

Coxinhas, quibes, esfihas, perfume de pizzas assando em fornos por toda a cidade. Gastronomia.
Zé Marmiteiro salta das páginas do Correio Paulistano para o encontro com Juca Pato que saiu às escondidas da Folha da Manhã. Vão se encontrar na esquina da Av. Ypiranga com São João; os dois, num cochilo do prof. Nelo e de Belmonte, vêm ao mundo surreal para falar sobre São Paulo... A discussão  vai durar a eternidade! Continuemos prestando atenção aos maravilhamentos que o Senhor Tempo nos propicia enquanto o tempo relogial não termina...  Melancolia?


São Paulo guaianá/guarany
Anhangabau, Tucuruvi,
Anhanguera, Tamanduateí,
Jabaquara, Caxingui,
Quitanduba, Morumby,
Sapetuba, Panamby...
 O sangue da terra, os índios de Tibiriçá, Anchieta, Nóbrega, Cunhambebe, é nóis na fita, valei-me São Jorge Ogum, meu pai justiceiro e vingador, meu orixá guerreiro, São Paulo  do nhengatu e  iorubá, dos dialetos da Itália, do alemão e do ídiche... Algaravia


São Paulo, São São Paulo, meu amor.
Tom Zé, embora renitente, paulistanizou-se; de réiva, mantem o sotaque bahiano com dificulidade; a vizinhança com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, com o Prof. Dr. Alexandre Mello Filho e com oS paulistaníssimos bairros de Higienópolis e Perdizes não permite que ele baianize a cidade; todos vão passando, tudo vai passando, depressa, depressa, depressa... Mais pessoas vão chegando, vultos fantasmais, avuando, avuando, avuando...
E chegam os vultos, quais fantasmas de Shakespeare,  de Armando Rosas e Oswaldo Molles, que escreveram Histórias das Malocas, que criaram o Charutinho que, por sua vez, marionetou o Juó Rubinato, inventor do Adoniran Barbosa ator, e que o interpretou até morrer; assim Adoniran ganhou vida e viveu até seus últimos dias falando errado e vestindo-se como o personagem. Molles e Rosas, inventores de mitos, silentes, felizes por serem esquecidos pela turba...ICONOCLASTÍA!


Já se passaram mais de dous segundos. Milhor voltar, escrever, tomar da penna, seguir os versos da canção:
"Quando se sente bater
No peito heróica pancada
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer..."      (Tobias Barreto grita desesperado do fundo de não sei  onde: " O verso é meu, o verso é meu...! Lembrem-se de mim, lembrem-se de mim!)
**********
Sou parido pelo Jaraguá; voo dentro de uma placenta sobre a cidade amanhecente. Milhões de automóveis, trens, metrôs, ronco de aviões, gritos, tiros, risos, choros, glub, glub, a pinga, a cerveja descendo goela a baixo. Pingado e pão com manteiga na chapa! Polifonia 


O ruído do mar  nos sonhos malucos de Cásper Líbero: " Vou erguer um prédio de 60 andares na Av. Paulista... Do último andar poderei ver o mar..." Maresia


Pouso, aterrizo (?), volto à mim. Estou no Caxingui, em minha casa. Torcedores do São Paulo Futebol Clube passam pela avenida em direção à Pinheiros; eles vem depredando orelhões, quebrando vitrines. Meu filho tranca os portões gradeados de minha casa-prisão. Talvez os corinthianos estejam fazendo o mesmo em outro corredor de despejo de torcedores e outros pais estejam trancando suas casas-prisões...
Verticais, horizontais, altos e baixos; são muitos os ângulos pelos quais São Paulo pode ser vista e comprendida. Trigonometria
Definitivamente estou em São Paulo, não há como fugir dessa cidade cheia de amor e de ódio.
Karma, 
Destino.
Ah! Mario, Mario de Andrade, ora pois, pois!

p/ Joaquim Ignacio de Souza Netto

domingo, 22 de janeiro de 2012

IV Centenário, os anos voam. A Vila Clementino de minha infância e adolescência.


Comecei a frequentar o bairro da V. Clementino em 1944 ou 45, época em que meus avós maternos vieram de São Manoel para São Paulo, numa aparentemente simples troca de santos e de cidades. No duro, no duro, essa mudança acarretou uma inversão total no modo de vida da família de minha mãe que, de trabalhadores caipiras renitentes, passaram a ser habitantes de uma grande cidade e precisaram adaptar-se de imediato, até por uma questão de sobrevivência; foram ajudados por meu pai (já estávamos em São Paulo naquela época) com procura de casa para alugar e algumas cartas de referência para obtenção de empregos para os filhos mais velhos, meu tio Mané e minhas tias Lucila, Ignes e Célia. Foram morar num grande sobrado, misto de residência e cortume, que ficava em frente ao Matadouro Municipal (hoje as dependências do antigo Matadouro abrigam a Cinemateca Brasileira). Meu avô, João Pedro da Silva, empregou-se no cortume e exercia as mesmas funções, entre muitas, que exercia em São Manoel, magarefe e curtidor de couros...

Queixavam-se do mau cheiro a que não estavam acostumados, de urubus pousados nas árvores, no telhado ou andando com suas passadas malandras pelo quintal que servia de local para secagem das peles. Todos trabalhando, uma melhoradinha na situação financeira, mudaram-se para a Borges Lagoa, 1064, quase ao lado da igreja protestante, acho que em 1946.

Fins dos 40s e início dos 50s, boa parte das ruas da V. Clementino não tinha calçamento, Borges Lagoa, Loefgren, Dr. Bacellar, 11 de Junho, Leandro Dupré, Diogo de Faria, Botucatu, Otonis, a exceção era a Pedro de Toledo, asfaltada... No quarteirão da Borges entre a Leandro Dupré e a Bacellar, os sócios e torcedores do Rubens Salles FC jogavam malha no meio da rua, ou bocha numa quadra montada junto à sede do time. Havia o boteco do Mandioca, frequentado pela fina flor dos encrenqueiros do bairro, a padaria Chave de Ouro, a farmácia do 'seu' José, a capela de São Francisco de Assis, a Escola de São Francisco e muitos terrenos baldios e algumas chácaras beirando a Auto Estrada de Santo Amaro, caminho do aeroporto e além...

Em 1949, o antigo zagueiro da seleção brasileira, o "pai" Jau, após uma partida de seu time de veteranos contra o Rubens Salles FC, levou meu tio Mané para treinar no Corinthians após vê-lo jogar. Infelizmente a carreira do meu tio terminou no primeiro treino; por precisar trabalhar não poderia comparecer quase que diariamente ao Pq. São Jorge e então precisou continuar sua vida de rapaz pobre, boleiro "leão de várzea", com pouca cultura, trabalhando como operário em uma fábrica de artigos de borracha...

Ainda em 1949 meus avós mudaram-se para a Leandro Dupré, 655, numa espécie de vila com 03 casas, muitas árvores frutíferas, abacateiros, marmeleiros, caquizeiros e parreiras de uvas... Acabou que, em 1950, após ganhar um bom dinhiro no jogo de bicho e conseguir um ótimo emprego na VASP, meu pai alugou por Cr$ 1.500,00 mensais a melhor casa da tal vila; foi quando saimos do cortiço do Bexiga e nos mudamos para uma casa de verdade. Na Vila Clementino, eu, com meus 10 anos, comecei a aproveitar minha infância, um tanto que tardiamente. E, um tanto que tardiamente, tive meus primeiros amigos: os irmãos Toninho e Clóvis do 636, o Vadão, neto da d. Belmira, o Fasolim, filho do 'seu' Canhoto, o Astor e o 'Piturico' da 11 de Junho, o Carlito e alguns outros que vez ou outra apareciam por lá, inclusive um garoto chamado Miguel, que passava férias e feriados na casa dos pais do Toninho e do Clóvis, o 'seu' Zeca e a d. Helly. Morador do Bexiga, como eu fora, o Miguel se extasiava com o contato com a natureza, e com as nossas brincadeiras só possíveis num ambiente amplo, de liberdade sem riscos e de ar puro, com o nosso santo futebolzinho de todos os dias, com nossos primeiros olhares de peixe morto para as meninas...

No entanto, aquele paraiso não deveria durar muito, era bom demais para continuar existindo. A cidade estava se preparando para os festejos do IV Centenário, construções surgiam por todo o bairro, ruas eram, digamos, asfaltadas com o tal "virado à paulista", areia, brita fina e pixe derretida, uma droga. A Loefgren era a rua onde jogávamos taco e precisamos abandoná-la para que automóveis começassem a usá-la, imaginem só!, num total desrespeito às nossas necessidades lúdicas, nós, crianças e adolescentes. Naqueles anos risonhos e francos, me parece, as instituições benemerentes não tinham nomes politicamente corretos; alguns exemplos: AACD (Associação de Auxílio à Criança Defeituosa), Roda dos Enjeitados, Casa da Mãe Solteira (atual Amparo Maternal). A AACD ficava (e fica) no fim da Loefgren e a Casa da Mãe Solteira ficava (e fica) na Loefgren com a Capitão Macedo. Pois bem, entre uma instituição e outra, eram quadras e quadras de terrenos baldios que eram o nosso play-ground com campinhos pro bate-bola, áreas com uma mata um pouco maior, bambuzais, pés de gabiroba, bananeiras...

Um dia, tudo acabou. Caminhões e mais caminhões começaram a despejar areia e brita em nosso paraiso. De repente, toda aquela area se transformou num Saara de areia e pedra. No local foi construida uma usina de concreto para as obras do Parque do Ibirapuera. Barulho infernal, pó de cimento, caminhões, incômodos nas 24 horas do dia, 7 dias por semana. Nosso quarteirão da Leandro Dupré se transformou numa sucursal do inferno e as coisas foram piorando até atingir o paroxismo quando o campo do Rubens Salles, na Pedro de Toledo, acabou e todo aquele chão varzeano cheio de história transformou-se num condomínio residencial; o mesmo aconteceu com o campo do 21 de Abril e com os campos além Auto Estrada que deram lugar a complexos hospitalares (Servidor Público do Estado, Gastroclínica...). A própria Auto Estrada de Santo Amaro acabou por dar lugar à Av. Ruben Bertha...

Era 1954, era hora de a gente crescer, começar a usar calças compridas,   sapatos com meias o dia todo, usar Odorono nas axilas, aprender álgebra e latim...

Despedi-me da V. Clementino em março de 54. Durante algum tempo ainda mantive contato com os amigos, mas, aos poucos, cada um seguiu sua vida e nos dispersamos. Daquele tempo, apenas o garoto Miguel colocou o rosto fora d'água 60 anos depois, e a gente se comunica através de sites para os quais escrevemos...

Esta cidade de São Paulo não é fácil, minha gente! tudo é muito rápido, o tempo voa, os anos passam muito depressa e nós não nos apercebemos disso; ontem mesmo nosso caminhão de mudança desceu a Leandro Dupré e parou em frente à casa em que nós iremos morar.
Dá prá acreditar?...

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto


 

 

 

 

domingo, 4 de dezembro de 2011

NATAL, NATAL, NATAL, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BANG, BANG

1984, 1985, já se passou muito tempo dos fatos ocorridos.
Noite de Natal. Estou de plantão no Pronto Atendimento (P.A.) Municipal do Jd. Arpoador, um dos bairros/quebradas do Butantã nas bandas da Raposo Tavares. Como não poderia deixar de ser, faz frio, o posto está cheio de gente e os médicos ainda não chegaram para assumir seus plantões.
7:00h da noite.
Enquanto os "dotô" não chegam, nós, Enfermagem, vamos adiantando o expediente, preenchendo formulários, desarquivando prontuários, preparando as salas de curativos e pequenas cirurgias, conferindo as medicações de tarja preta, ouvindo reclamações e ameaças de depredação e espancamento o tempo todo, um ambiente ideal para quem gosta de viver perigosamente (P.A. de periferia não é bolinho, minha gente!).
- Êpa, chegou a dra. X; vou colocando as fichas e prontuários no consultório, que ela está estacionando o carro, "vamo-que-vamo"..., ainda bem que chegou alguém...
Vozerio no salão de espera:
- Chegou a 'dotora'... esses médico véve atrazado...
- Vai vê essa vaca 'tava' em argum motér da Raposo e perdeu a hora... eu conheço essa gente... essa gente num presta..., ainda mais uma médica gostosa dessa...
- Ô pessoar, si argum arguém docês mordê a língua morre envenenado...
A dra. X chega à porta do consultório:
- Senha nº 1, podentrá...
Aos poucos vão chegando o médico chefe do posto e a Dra Y e, então, o 'bonde' começa a andar...
11:00h da noite
O movimento caiu , bebuns foram atendidos e dispensados (... eu só vim prá tomar uma 'gricose' nos 'cano' e já vou imbora...), alguns casos de 'espirrose aguda', uma diarréia aqui e ali, um ou outro caso de 'esculhambose' na coluna ...(viu dotô, fui inchê uma lajia pro visinho e fudi co espinhaço! Tem jeito de dá um tranco prá pô o espinhaço no lugá?...), os hipocondríacos foram atendidos e medicados com drágeas de "substância G" (açúcar) e totalmente curados, sendo dispensados sem receita ou pedido de exames e com a recomendação de retornar no caso de os "sintomas" voltarem...
A Ceia de Natal já estava sendo preparada por nossas colegas de Enfermagem e pelas médicas e tudo levava a crer que seria deliciosa: cafe com leite, 3 "frangos à manivela" de padaria, algumas garrafas de guaraná e coca-cola e sanduiches de pão de forma com um patê de sardinha em conserva e maionese indusrial, um opíparo banquete (certa vez, numa das últimas entrevistas que Procópio Ferreira concedeu, êle usou esses termos - opíparo banquete - que, pessoalmente, eu achei pedante, deslocado do contexto da entrevista, não eufônico, demonstração do uso de uma falsa condição cultural; no Brasil, no sermo vulgaris, ninguém fala desse jeito e, só porque lembrei do nariz do Procópio, resolvi usar a frase)!
Não conseguimos celebrar o nascimento do Menino e, muito menos participar da ceia, aliás, não teve ceia de Natal porque naquela noitemadrugada, o 'couro comeu largado'... Quase meia noite, duas viaturas da PM descem, de ré, a rampa que leva à porta do P.A., sirenes explodindo em som, encrenca da braba! Macas e cadeiras de roda na porta! Dois casos: um homem com FAF (Ferimento por Arma de Fogo) e uma gestante em trabalho de parto.
- Anda, anda, depressa com as coisas, baleado na sala de curativos, o cara tá sangrando muito. Acho que algum vaso grande tá estourado, a subclávia talvez, orifício de entrada: região escapular direita, não há sinal de saída; no mínimo pneumotórax também, não dá prá nós cuidarmos aqui, curativo compressivo bem apertado, ambulância e HC, a dra. Y acompanha... e chama uma menina prá te ajudar com esse parto...
- 'Peraí', doutor! que conversa é essa de "me ajudar com o parto"? Eu nunca fiz um parto em toda minha vida...
- Vai se paramentar, calça as luvas, que hoje voce vai fazer o seu primeiro parto...
- Mas doutor...
- Que cazzo, Joaquinzão! O cara aqui tá sangrando muito, não dá prá mim largar prá partejar essa mulher... deixa de resmungar que nem velho... essa criança vai sair sózinha... o que não dá é prá por a criança de volta!
- Muito engraçado, doutor...
A mãe acabou dando a luz em pé e eu e a Marisa apenas aparamos a criança para que ela não caísse de cara no chão, o que, definitivamente, não seria um bom começo de vida numa noite de Natal. Mãe, nenê e placenta foram encaminhados para a (antiga) Maternidade da Lapa para término de procedimentos.
E o baleado? O que foi feito dele? Bem, essa é uma outra história absurda daquele Natal inesquecível: diminuido o sangramento, o paciente foi levado para o HC com acompanhamento da Dra Y e deve ter sobrevivido (pelo menos daquele tiro); minutos depois da saída da ambulância com o ferido, o PA foi invadido por um bando que, simplesmente, foi lá prá acabar com a vida do baleado... Ameaças, os consultórios e salas de procedimentos revirados, gritos, correrias, tiros para cima, debandada geral. Pulei uma janela e caí em cima do meu próprio carro (uma Brasilia sofrida). Entrei na Raposo voando baixo, uns 60 por hora... 03:00h da manhã, d. Odete espantou-se com minha chegada:
- Ué! liberaram você mais cedo? 'Tá tudo bem? Tudo bonitinho?
- 'Tá tudo bem...Feliz Natal...
- Prô 'cê também!
- Vamdormí que daqui a ouco eu pego no HC...
- 'Cê tá esquisito! Tá tudo bem, mesmo?
- 'Tá! Eu ajudei num parto...
- Gostou? Menino ou menina?
- Um menino, a mãe quer dar meu nome prá ele e eu disse que não, meu nome não cai bem prum recém-nascido, é nome de adulto...
- Que coincidência, heim?
- ???
- Natal, parto, menino, entendeu?
- Entendí, só que os Reis Magos chegaram atirando...
- Agora sou eu que não entendi...
- Não esquenta, depois eu te explico com mais calma...
- Tchau então, parteiro...
- Num enche, Dé! Vê se dorme... tchau!
 
 

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

INCIDENTE NA RODOVIA DOS IMIGRANTES


12 de setembro de 2011.

Minha mãe, Dona Zezé, 90 anos, queixa-se de mal estar, cansaço. Está muito ansiosa, mais do que de costume.
Meço a pressão arterial: 180x110mmHg. Procuro acalmá-la. Repouso, hiperventilação. Nova medição: 140x95mmHg. Melhorou um pouco. Telefonar para o convênio médico urgentemente. Ligação para Itanhaém, marcação de consulta com a médica geriatra quase que instantânea: - A consulta prá Dona Maria José eu ‘vou taRR agendando’ para hoje, às 10:00h. O horário está bom para o senhor?
- Não filha, não está! ‘Tou’ ligando de São Paulo e não vou chegar a tempo aí. Olha, são 9:00h! Me arruma outro horário na parte da tarde...
- E 01h da tarde? Dá pro senhor “taRR” chegando aqui?
- Dá! Obrigado...
- Então nós vamos “taRR” esperando a d. Maria José prá consulta às 13:00h. OK?
- ‘Tá’.
Explicando: minha mãe tem 3 convênios médicos (SUS, Servidor Público do Estado e o convênio pago pela Associação dos Funcionários da VASP), todos complicadíssimos para marcar consultas, exames, etc, aqui em São Paulo. Portanto, prefiro que minha mãe utilize o convênio da VASP no litoral, muito mais rápido e com um atendimento excepcional, apesar da super inflação de gerúndios e de estranhíssimas conjugações verbais...
Verificação no carro, aquela checagem manjada. Roupas no porta malas: - Pra quê tanta roupa, mãe? A gente vai, passa na médica, dorme em casa e amanhã nós voltamos numa boa, sem dramas.
- Lá faz frio, Ignacio. ‘Cê sabe que eu sou friorenta... Pegou minha bengala e o andador?
- Tudo bem, mãe. Não ‘tá’ mais aqui quem falou! Tá tudo aqui. Bengala, andador...
Chegamos às 11:30 h em minha casa em Mongaguá. Minha mãe descansou um pouco em seu quarto, tomou um cafezinho, comeu umas bolachinhas... 12:45 h estávamos na clínica, em Itanhaém, rápido, rápido.
Consulta, receita, pedido de exames de sangue e urina. Almoçamos em um restaurante, voltamos prá casa. Tarde tranquila. Assistiu TV (noticiário e novela) e foi dormir.

13 de setembro de 2011.
- Ignacio, eu quero ficar mais um pouco, vamos amanhã...
- ‘Tá bom...

14 de setembro de 2011.
- Vamos ficar mais um dia, Ignacio. Eu ‘tô’ um pouco cansada...
- Tudo bem, mãe... Eu já sabia... Mas, amanhã a gente volta prá São Paulo bem cedinho.
- Não, eu quero ir de tarde...

15 de setembro de 2011.
Almoçamos em um “por kilo” no centro de Mongaguá e pegamos a rodovia. Garoa, tempo enfarruscado, limpador de parabrisas zzzplac, zzzplac, zzzplac, pouco movimento na pista. Viajo sem pressa a 70, 80 km/h, às vezes caindo para 60. Minha mãe viaja a meu lado.
- Ignacio, tira esse cinto de mim... ele me aperta o peito...
- Não posso, mãe. É prá sua segurança...
- Mas me aperta e me dá falta de ar...
Pedágio em São Vicente: R$ 5,10.

O HORROR!... O HORROR!
(Joseph Conrad)

Começo a subida da serra. Inicia-se a sucessão de túneis. 13 túneis, número um pouco assustador para os mais supersticiosos. Na saída do 3º túnel entramos em uma nuvem, neblina muito densa. Diminuo a velocidade para 40 km/h. Dentro dos túneis, tudo bem. Praticamente é uma subida por dentro das montanhas e o único problema são os caminhões, as carretas, os transportadores de containeres que excedem de muito a velocidade permitida, que fazem ultrapassagens proibidas, que mandam a legislação de trânsito (e a boa educação) para as Cucuias! Há que se tomar muito cuidado, direção defensiva e muita fé.
Saio do último túnel e entro num limbo branco de neblina. Todas as luzes defensivas de meu carro estão acesas, faróis inclusive. Diminuo a velocidade para 20, 30 km/h. Um carro preto passa voando pelo acostamento, coisa de 80, 100 km/h. Uma carreta lonada, carregada, um bólido, desaparece na neblina pela direita. Cautelosamente continuo avançando, um olho nos retrovisores, outro olho à frente. 200 metros, 250. Vou como que tateando o caminho naquela escuridão branca. Passo pelo carro preto que acabara de trombar com a carreta que me cortara pela direita. Dois homens saíram do carro e estão correndo. Uma confusão à frente, cerca de 50 metros. Há uma brecha, vai dar prá passar, só acelerar um pouquinho. Explosão, um flash light avermelha a neblina. Um caminhão tanque batido começa a pegar fogo. Não dá mais para avançar. Preciso ir para o acostamento ou sair de vez da rodovia. Olho para o retrovisor. Outro estrondo fortíssimo. Um Doblö, literalmente voando, se choca contra meu carro. O mundo fica de ponta-cabeça. Por inércia, o caminhão que atirara o Doblö contra meu carro continua avançando e esmaga-nos. As pessoas gritam desesperadas. Ruídos de frenagens e batidas em sequência: bam, bam, bam, bam. Fumaça preta! Minha mãe grita:
- Pelo amor de Deus, Ignacio! A gente vai morrer, a gente vai morrer! O Alcides (meu falecido pai) tá vindo buscar a gente!
O choque arrancara os dois assentos do soalho do carro. Minha mãe está chorando...:
- A senhora ‘tá’ bem, mãe? Algum machucado?... Espera aí que vou soltar seu cinto...
O carro parecia um bandoneón e eu não conseguia abrir as portas. As trombadas continuavam, mais gritos, mais fogo, mais explosões. Porta malas, banco de trás, teto, desapareceram, melhor, viraram um amontoado de metais retorcidos. A neblina e o frio começam a nos fustigar. Vivos nós estávamos até aquele momento, mas tínhamos de sair daquela armadilha. Pessoas do lado de fora param de correr:
- Ajuda aqui, ‘vamo arrancá essa porta’! Tem dois ´véio’ preso aqui...
Conseguiram. Carregaram minha mãe até a grama. Eu corri também. Alguém estava sendo queimado vivo onde havia um fogaréu! Cheiro de carne queimada. Os gritos cessam, resta apenas o cheiro de carne queimando...
As explosões e batidas continuavam, também os gritos. Começam a chegar ambulâncias e carros de bombeiros vindos de Cubatão, de São Bernardo, de Diadema. Policial da PM sentado na grama, braço direito quebrado, parecendo um “W”. Lonas amarelas estendidas no chão recebem feridos. Atendimento médico. Mamãe recebe um crachá do SAMU com um código de cores. Pergunto o que significa. “Ela está bem”, um paramédico responde.
Frio, garoa. Estamos ensopados. Minha mãe está descalça, perdeu as pantufas no carro e eu perdi meu celular. Um anjo faz uma ligação para casa em São Paulo. Consigo falar com a Odete: - Está tudo bem, “Dé”! Mas, não sei o que vão fazer com a gente...
- Fica calmo, cuida de sua mãe. A Cláudia e o Marco estão indo aí, pegar vocês!
- Pegar como? A rodovia está bloqueada nos dois sentidos...
- Ignacio, deixa de ser bobo! Prá que você tem filho policial? Não esquenta não! De carteirada em carteirada, daqui a pouco eles estão aí. Fica frio...
- Mais?
De fato, não demoraram. O Marco conversou com seus colegas da PM e a Cláudia, como não tinha ninguém da polícia civil prá conversar, ficou no carro dela com a gente... Foi preciso negociar com os coordenadores do socorro a nossa saída. Conseguimos entrar no Rodoanel e vimos que, apesar de tudo o que acontecera e continuava acontecendo, os loucos continuavam à solta. Caminhões, carretas, carros, em alta velocidade na pista. Visibilidade reduzidíssima. Antes do pedágio, colisão. Caminhão encavalado sobre um Uno, coisa feia...
Embu, Régis Bittencourt, Taboão da Serra, Av. Prof. Francisco Morato, Ferreira, Vila Sonia, Caxingui, Previdência. 21:30h. Chegamos.
A Odete abraça minha mãe: - E aí, “cumadi” Zezé? Como é que foi a coisa? (A Odete nunca chamou minha mãe de sogra. Sempre a chamou de comadre e minha mãe sempre aceitou numa boa).
- Fiquei muito nervosa, passei frio. Lá no alto da serra faz muito frio... Tem janta?... ‘Tou com dor de cabeça... Me dá um comprimido... Vou tomar banho e vou dormir... O Ignacio esqueceu o meu andador e a bengala no carro! Ele não presta atenção nas coisas...
- ‘Tem importância não, “cumadi”; amanhã nós compramos uma bengala e um andador zero quilômetro prá senhora... Tudo folhado a ouro...
Fomos dormir passava da meia noite. Telefone não parava de tocar. Parentes querendo notícias, de Santos, de vizinhos de Mongaguá, meu cunhado da Praia Grande, parentes da Odete, de Franca, de Patrocínio Paulista. Tivemos nossas 3 ou 4 horas de fama!
Minha mãe ganhou um galo na cabeça; eu ganhei uma esfoladura no joelho direito.
A Odete, popularmente conhecida como Madame Sarcasmo:
- Um galo e um arranhão? Nem valeu a pena vocês se meterem nessa confusão toda e, ainda por cima com a perda total de nosso carro. Mas que merda heim? Da outra vez eu quero ver pelo menos um pouco de sangue...
- “Dé”. Não enche o saco... vamdormí...!
Tudo very British demais pro meu gosto... Mas, ainda estamos vivos.
 

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto
 

terça-feira, 25 de outubro de 2011

CAMELÔS DE SÃO PAULO

Vamos falar um pouco sobre a camelotagem em São Paulo.
Para isso vamos passear um pouquinho pelo passado da cidade, ver como eram as coisas alguns séculos atrás e depois vamos voltar para o presente. Vamos viajar, eu e você se você quiser. Topa? Que bom! Então vamos lá!

Nao é brincadeira, nem exagero no que estou afirmando mas os camelôs já fizeram por merecer poesias, já foram poetados por muita gente, por repentistas nordestinos que fazem ponto no Largo de São Bento (camelôs da voz e da música), já foram interpretados por humoristas no rádio e na televisão, já se auto-glorificaram, chegaram até a ter associações sindicais, Billy Blanco falou sobre eles em sambas; alguns camelôs venceram na vida por sua simpatia, outros pela verve, muitos pela persistência e insistência para vender seus produtos.
E, já que eu falei em poesia, poemas e poetas, ouçamos Manuel Bandeira:

"OS CAMELÔS
Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam box
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma
Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
-"O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar
um pedaço de banana pra eu acender o charuto. Natu-
ralmente o menino pensará: Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo
[de demiurgos de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da me-
[ninice...
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma
lição de infância."

Quando o "Grande Tuberculoso" Manoel Bandeira poemisou essa homenagem aos camelôs dos anos 30s e 40s, a camelotagem como profissão, pelo menos para o povo da época, era uma profissão honrada e almejada por muitos, mas exercida por aqueles poucos que tinham o dom (dom, queda, jeitão, bossa...) da palavra e do convencimento para exercê-la.

UM PEQUENO DESVIO EM NOSSO RACIOCINIO MAS JÁ RETORNAREMOS AO ASSUNTO
Alguém: - Epa! Que desrespeito é esse?: Chamar o famoso poeta pernambucano de 'O Grande Tuberculoso'? Aonde nós vamos parar? Será que nem mesmo os mortos ilustres conseguem ser respeitados nesta Terram Papagalorum?
Eu: - "Peraí, meu!... Eu só estou fazendo minhas às palavras de Agripino Griecco, um defunto finíssimo, crítico literário, cronista, gramático, escritor de livros, que tinha uma certa idiosincrasia em relação ao poeta. Agripino chamava Manoel Bandeira de "tuberculoso profissional" , "O Grande Tuberculoso", ou dizia que "curar tuberculose na Suiça, até eu queria ser tísico", "só vou acreditar nessa tuberculose com o resultado do exame de escarro" ou "quando ele morrer quero ler o Atestado de Óbito", ou ainda, "desde 1917 que ele vem enchendo o saco com essa história de tuberculose...", porém, tudo poderia ser ou estar combinado entre os dois, vai saber, inimigos mortais é certo que eles não eram!

FEITOS OS ESCLARECIMENTOS QUE SE FAZIAM NECESSÁRIOS, CONTINUEMOS O QUE TÍNHAMOS PROPOSTO, O QUE É VERDADEIRAMENTE NOSSO ESCOPO
"- Nossa cidade de São Paulo sempre foi um campo de trabalho para a honrada classe dos camelôs e isso vem ocorrendo desde os tempos da colônia. Provas? Quer dar um passeio na ciade de São Paulo do passado? Quer? Ótimo! Então vamos dar um passeio pela atual rua da Quitanda nos primórdios do século X!X. Pronto? Vamos!
É de manhã, 9, 10 horas de uma manhã de sol. Saimos da Sé e seguimos pela rua do Rosário dos Homens Pretos em direção ao Mosteiro de São Bento. Rua sem calçamento e com uma série de casas de dois andares, janelas e portas fechadas, mas não olhe assim, descaradamente, para as janelas das casas. Por trás das venezianas estamos sendo observados... Percorremos uma distância pequena, 60 metros quando muito e entramos no Beco da Cachaça (que não se perca pelo nome); nos dias de hoje, o Beco da Cachaça corresponderia ao primeiro quarteirão da Rua da Quitanda, entre a XV de Novembro e a Álvares Penteado; é agora, preste atenção, olhe bem, estamos entrando na rua do Cotovelo ou rua Torta (em contraponto à rua Direita) que mais tarde, ainda neste seculo XIX vai se chamar oficialmente rua da Quitanda. Notou que é um trecho de rua bem movimentado, muita gente vendendo coisas? Cacofonia, gente apregoando seus produtos ao mesmo tempo:
- Olha a pamonha de milho verde! Quentinha, gostosa, sinhá...
- Amendoim torradinho, vai levá, Sinhá? Vai levá, Sinhô?
O tripeiro anunciando seus produtos fresquinhos:
- FíííígMcotó, FííííígMcotó (fígado e mocotó!)
E as negras de ganho vendendo suas quitandas: cocada branca e queimada, balas de côco, goiabadas na palha de milho, compotas, beijús, cabelos da anjos, doce de leite, torrões de rapadura, roletes de cana...

(QUITANDAS: são doces, compotas, bolachas... O termo 'quitanda' vem sendo usado no interior de São Paulo e Minas Gerais desde 300 anos atrás...)

A rua do Cotovelo, graças a seu comércio, diríamos que informal, passou a se chamar rua das Quitandas, dando origem à rua da Quitanda dos dias atuais... Ah, a influência dos camelôs no crescimento e desenvolvimento de nossa cidade! Quem diria heim?
Mas, agora, vamos avançar um pouco mais no tempo, até porque já estão nos olhando com desconfiança, inclusive aquele gendarme bigodudo postado ali na esquina com a rua de São Bento, ele não está com cara de bons amigos; avancemos, pois.
São Paulo, anos 1940s: coincidentemente o sol continua brilhando, o mesmo sol que brilhava na rua do Cotovelo no século passado. Grupo de pessoas curiosas em pleno Viaduto do Chá. Vamos nos aproximar. Olha lá! Um homem de terno, chapéu, engravatado, até que elegantemente trajado, falando e falando sem parar:
" ... senhores e senhoras, estou apresentando, pela primeira vez em São Paulo, esta moderna cidade, a maior invenção da ciência norte americana dos últimos anos: este incrível aparelho aqui na minha mão, é um amolador de facas, um abridor de latas e um cortador de vidros, tudo ao mesmo tempo; não é preciso prática nem habilidade! Qualquer pessoa pode se utilizar desse maravilhoso aparelho sem dificuldade, amolando facas em sua própria casa, abrindo aquela lata da goiabada que as crianças adoram, ou cortando vidro no tamanho que quiser para trocar uma vidraça quebrada, para cortar garrafas e, quem sabe, ganhar um dinheirinho fazendo e vendendo abajures e enfeites de mesa... Nas melhores casas do ramo, os senhores e senhoras iriam pagar 5.000$000 por essa maravilha. Aqui, comigo, o preço é de apenas 1.000$000. Um mil réis e nada mais, e ainda levam de brinde um pacotinho de barbatanas pra colarinho... Podem chegar, senhores, eu tenho um estoque grande dessa maravilha..., um aqui para o cavalheiro... a senhora vai levar? Isso madame, bota o seu marido prá amolar as facas, cortar vidros..."
Vamos caminhar mais um pouco; vamos até a rua Direita, até o Largo da Misricórdia. Mais um aglomerado, ali em frente ao chalé da Loteria Federal "A Quinela de Ouro", mais um camelô e sua conversa hipnotizante:
"... e essa pomada cura qualquer tipo de dor interna ou externa. Um produto feito pelos índios do Amazonas; a pomada que estou trazendo para os senhores é feita com o óleo extraido da gordura do poraquê, o peixe elétrico do rio Amazonas. A cura para suas dores vem de longe, do meio da mata fechada, feita pelos índios da tribo dos burubutangues, os únicos que sabem os segredos das curas... 300$000, trezentos réis aqui com o papai; na Drogasil, ali em frente, não adianta procurar que não vai achar, é um produto exclusivo que só eu estou autorizado pelo pagé a vender aqui em São Paulo... Trezentos réis a latinha e ainda leva uma amostra de perfume Chanel nº 5 para dar para a sua noiva ou noivo, esposa ou esposo... Vamos levar, cavalheiros, que está acabando... um aqui para o cavalheiro, a senhora vai levar 2? 2 eu faço por 500 réis... Vamos pessoal, que 'tá acabando..."
*********************
Os camelôs eram pessoas/figuras simpáticas, reis da comunicaçao, falantes, bem humorados, mas estavam caminhando para a extinção, eles sabiam, a cidade sabia.
A partir dos anos 1970s os camelôs começaram a perder espaço para os "marreteiros" que montaram barracas, verdadeiras lojas que vendiam (vendem) de tudo, desde os produtos mais simples até ferramentas, eletro-eletrônicos - rádios, gravadores, TVs portáteis...- e, em alguns casos, até que frequentes, bebidas alcóolicas e entorpecentes (Na r. 7 de Abril com a Conselheiro Crispiniano havia uma pessoa com deficiência física que "vendia" frutas em uma carrocinha; até aí, tudo bem! No entanto, policiais descobriram que o "pobre" marreteiro comprava produtos roubados por "trombadões" que agiam na Barão de Itapetininga e Pça da República, além de vender "crack" para viciados da área...)
Pois é, camelôs, camelôs ali na batatolina, não existem mais. São Paulo sofreu um processo de caruarização que está difícil de resolver. Ruas e praças bloqueadas por marreteiros, pessoas andando no meio das ruas, disputando espaço com motos, carros e ônibus, porque as calçadas estão entupidas de barracas, de caixotes... Pelo menos os marreteiros não estão vendendo armas de fogo (será?), mas existem barracas no centro da cidade que vendem armas brancas, facas, punhais e coisas que tais...
Melhor voltarmos para os anos de 1930s, 40s, 50s, uma época melhor, quando nossa cidade era mais calma, mais limpa, quase sem violência, um tempo em que se podia andar pela cidade, parando aqui e ali para ver/ouvir os camelôs:
-... é o brinquedo ideal para as crianças de todas as idades. Direto dos Estados Unidos da Norte América, o brinquedo que agrada a todos, papai, mamãe, vovô e vovó... qualquer criança brinca e se diverte, não é preciso prática nem habilidade. Nas Lojas ds Dois Mil Réis o ioiô custa 1.500$000 réis, mas eu estou vendendo por apenas 500 réis... Vamos levar pessoal, 'tá acabando...
Sinceridade! Não dá vontade de ficar definitivamente neste passado? Seja sincero!
por Joaquim Ignacio de Souza Netto
 
 
 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A NOITE DE SÃO PAULO TAMBÉM TEM SEUS MISTÉRIOS

...naquela 'noitemadrugada' de segunda feira, dia de Exu Alegbá, após uma gira no páteo do Vaticano que servia como terreiro do candomblé de Mãe Jurema - afamada e poderosa Yalorixá - ele desapareceu.
Algumas pessoas dizem que ele sumiu numa nuvem que, de repente, cobriu todo o cortiço; outros afirmam de pés juntos que ele se transformou num bode preto e que desandou a correr, apoiado nas patas traseiras, pela rua Santo Antonio e se perdeu de vista no Anhangabau.
Um outro grupo afirmava que ele se jogou numa grande fogueira que ardia no terreiro e subiu para Olorum num vórtice de fagulhas...
Nunca mais foi visto ou nunca mais se deixou ver.
Mãe Jurema dizia que ele tinha se transmudado em uma entidade, que ele deveria ser cultuado e alimentado nas encruzilhadas do centro da cidade, centro que, durante toda sua vida vivida por 70 anos, fora seu campo de batalha e seu domínio.
Começava assim a 'lendistória' de Manézinho das Mulheres, malandro do bem, figura querida por todos, amado por todas as mulheres, grande jogador de futebol varzeano, amigo dos amigos, filho dileto dos Orixás, babalorixá dos grandes cortiços do Bexiga, saravá Xangô!
Manoel Pereira da Silva - existe nome mais brasileiro? - até os acontecimentos daquela segunda feira, era morador do Vaticano onde nasceu, cresceu, morou e viveu seus melhores dias. Funcionário público do municipio, conseguira seu emprego graças aos conhecimentos de Mãe Jurema, mãe postiça e madrinha, que o adotara in pectore, após a morte de sua mãe, a comadre Mariinha, que, coitada, morreu dias após lhe dar a luz, vitimada por uma infecção terrível, apesar das cartilhas que o Dr. Arnaldo distribuia para as aparadeiras: Lavem as mãos, usem toalhas limpas, não deixem sangue nas cavidades, desinfetem as tesouras e pinças...
Criado por uma Yalorixá, claro que seria dedicado aos Orixás, nem duvidar...
Quando, ainda tatibitate, engatinhando e dando os primeiros passos, foram jogados os búzios para saber quem seriam seus pais ancestrais: ao primeiro Odu respondeu Exu Alegbá. |
Ao segundo Odu, a resposta foi de Xangô.
No terceiro Odu, a grande mãe Yemanjá, a Mãe do mundo. derramou seu leite sobre ele. Eram esses os pais ancestrais africanos de Manuel Pereira da Slva, bem mais tarde conhecido em São Paulo como Manézinho das Mulheres.
Desde criança saía com Mãe Jurema para arriar os 'trabalhos' em diversos lugares da cidade: na rua do Carmo com Tabatinguera, ao lado da Igreja da Boa Morte; na Vergueiro, ao lado da Igreja dos Enforcados. No Saracura, no Bexiga velho,  arriavam muitas velas e muita comida de santo e ela não perdia a ocasião prá mostrar o porque das coisas:
- "Mané, aqui é lugar onde muito nêgo foi enterrado nesses matos, 'morridos ca bexiga'. Os antigos num tinha vacina qui nem hoje e eles morria ca variola ou ficava marcado 'cocorpo' cheio das bereba moiada e das bereba seca, 'cacara' toda furada. Os moço ainda sarava, mas as criança e os véio morria tudo... Minha falecida avó era cativa de ganho e contava prá gente que quando começava a 'pidemia' de bexiga, as pessoa num podia chegar perto, só quem já tinha tido e num tinha morrido. Os cadavi tinha de sê enterrado fora da cidade, bem longe, muito longe, porque as bexiga 'pegava'. A Senhora Marquesa de Santos, D. Domitila, deu um terrenão prum cemitero na subida da Consolação , no rumo do Caaguaçu e de Pinheiros, prá enterrá a brancaiada que morria cas bôlha da varíola. Os nego, qui nem nóis, num podia enterrá no nosso cemitero da Misericórdia. Tinha de enterrá fora da cidade qui nem os branco. Os malungos, então, punha os difunto, 3, 4 duma veis, numa jangada e subia o Saracura Grande até o pé do Caaguaçu, no encontro co Saracura Pequeno e enterrava os irmão lá...Os antigo chamava o lugar de 'mata da bexiga' e o nome ficou até hoje".
Os despachos para o Alegbá eram feitos na chegança da Hora Grande, meia noite, no maior silêncio e respeito e sempre no Largo da Misericordia. Velas, alguidares, farofa amarela, quiabo, galinha assada, pinga, pipoca...
Os atrasados que iam para a Sé ou para a Xavier de Toledo para tomar os últimos bondes, os 'negreiros', alguns ao passar pela Misericordia apertavam os passos após uma olhada de esguelha para aquela senhora e a criança que acendiam velas e jogavam pipocas por todo o Largo da Misericordia; alguns outros paravam um pouco na esquina da Quintino com a Direita, olhavam a cena espantados, faziam o sinal da cruz e seguiam em frente resmungando: - ...essa negrada... onde já se viu!... desrespeito!...e a polcia tá aí praquê?...
O Largo da Misericordia, para os paulistanos iniciados no Candomblé e na Umbanda, era, talvez, o lugar de maior respeito; sob os paralelepípedos, sabiam, havia um cemitério, o único que podia receber os corpos dos malungos; ali era o local onde se erguera a primeira igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o campo santo de frente prá Santa Casa nos anos de 1700. Então, todas as oferendas que devessem ser feitas na Kalunga, eram feitas na Misericordia, rituais impossíveis nos Enforcados e suas mortes com muito sofrimento e nem na Boa Morte, prenúncio da morte na forca, a antecipação do sofrimento físico! O campo santo da Misericordia era o único lugar da cidade de São Paulo onde os antigos malungos mortos repousavam em paz!
Aos 14 anos, no cumprimento de sua segunda 'obrigação', começou a sentir uma presença, algumas presenças, dizendo melhor. Assustado, só se acalmou quando Mãe Jurema explicou que, a partir de então, viveria num mundo diferente do mundo dos demais viventes, que se acostumasse.
Quando arriava os despachos na praça em frente à Igreja dos Enforcados ouvia o choro de centenas de vozes e sombras que flutuavam na noite. Na Igreja da Boa Morte, ouvia soluços, imprecações e o rumor de centenas de vozes rezando... Na Misercordia ele via, nitidamente, um homem bem vestido, sentado no calçamento ou no meio fio, fumando e acompanhando os trabalhos:
- Mãe Jurema, a senhora 'tá' vendo aquele homem sentado ali?...
- Não, não tô vendo, mas deve ser o senhor Exu Elegbá, seu pai protetor. Não se preocupe, é assim mesmo...
Você represa ou desvia o curso de um rio, é uma possibilidade, mas você não consegue parar ou desviar a marcha do tempo. Carapinha branca, Manoel Pereira da Silva se deu conta que o tempo passara voando e êle sentia que estava chegando a sua hora. Os buzios tinham dito que sua jornada terminaria aos 70 anos, nem mais, nem menos, que ficasse preparado pois só haveria axexé!
Mãe Jurema já passara dos 100 anos, lúcida, cada vez mais sábia e com uma dificuldade muito grande de locomover-se; valia-se muito dos préstimo de Manézinho das Mulheres.

Manézinho? Pensativo, se acabrunhando sempre que ouvia no rádio um samba cantado pelo Sílvio Caldas. Sentia-se retratado nos versos da canção:
"Nos olhos das mulheres,
no espelho do meu quarto
é que eu vejo minha idade.
O retrato na sala
faz lembrar com saudade
a minha mocidade..."
Pensativo, pensou.
Pensou e pesou tudo o que havia feito, não feito, sentido e não sentido. Nunca magoara ninguém, era uma pessoa simpática, divertida, piadista. Era também o rei da mulherada. Deixou filhos e filhas, carradas deles, no Brás, Bexiga e Barra Funda. As mães desses filhos e filhas, negros, mulatos, sararás, filhos de diversos sangues, o adoravam, fariam tudo por ele. Na festa dos Ibejis, de Cosme e Damião, levavam as crianças para serem abençoadas por Mãe Jurema e por êle, o Manézinho das Mulheres, o pai negro que povoou o Vaticano e arredores e, essas crianças, crescidas, levavam seus filhos para conhecerem a bisavó e o avô e serem, tambem, abençoados...
Sonhou.

Exu Alegbá bafora a fumaça de seu charuto em seu rosto adormecido.
Xangô encosta seu machado de duas lâminas em seu corpo e sorri.
Yemanjá, mãe negra de fartos seios, acomoda sua cabeça em seu colo e suas mãos  acariciam a carapinha branca.

Manézinho das Mulheres está atento em seu sono.
Diz Yemanjá: -Meu filho, meu filho, te espero no Niger e no Zambeze...Vais conhecer todos os seus Egunguns.
Diz Xangô: - Você, meu filho, foi um homem justo. Foi feliz e fez a felicidade de muitos e muitas...
Diz Exu Alegbá: - Amanhã venho te buscar. Você foi um bom filho, sempre me respeitou... Amanhã, amanhã, amanhã...
Segunda feira, gira de Exu Alegbá!
Uma nuvem baixa e cobre todo o cortiço enquanto milhares de fagulhas sobem de uma fogueira... Alguns dos adeptos assistem assustados como que uma sombra se materializar e deslizar em direção à rua Santo Antonio. Manézinho que estava no centro de tudo, com todos os olhares postos sobre ele, simplesmnte desaparece como uma luz que se apaga lentamente...
E nunca mais foi visto ou se deixou ver.
O barulho do bonde 5, Bela Vista, corta o silencio da cidade que está quase toda dormindo.
Luzes do Martinelli, do Banco do Estado e dos hotéis da Praça da Bandeira, o neon das Sardinhas Coqueiro na r. Formosa, Dom Peixito acendendo e apagando, piscapiscando...
O Vaticano, o Geladeira, o Pombal e o Navio Ancorado, os cortiços maiores do Bexiga, em dois anos irão desaparecer...
Os despachos na Misericórdia continuarão até a morte de Mãe Jurema um ano depois...
Um dia após o desaparecimento de Manézinho, os jornais:
"A Hora" publica na primeira página: "Inexplicável: Largo da Misericórdia amanhece coberto de pipocas".
O Dia:"Centro da cidade cheirando à perfume! Largo da Misericórdia coberto de pipocas!"
O Correio Paulistano:"Autoridades da Central de Polícia do Largo do Tesouro afirmam que irão investigar o insólito acontecimento..."
O Estado de São Paulo:" Manobra diversionista do P.C. no centro da cdade..."

Não precisam acreditar no que foi narrado, mas São Paulo é uma cidade onde tudo pode acontecer, até o mais misterioso e inacreditável...
Saravá!


p/ Joaquim Ignacio de Souza Netto
 
 
 
 

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Dante, o barbeiro boca suja e o Corinthians de 1929


Eu era bem garoto quando aparava minha carapinha na barbearia do Dante na rua Fortaleza no bairro do Bexiga, lá pelos anos de 1947 ou 48.
O Dante, um ítalo-corinthiano, era uma figura que hoje chamaríamos de ‘estranho no ninho’. Fanático pelo alvi-negro do Parque São Jorge, era capaz de arrumar as maiores encrencas com os antigos palestrinos/‘parmeristas’, que não se conformavam com o fato de um paesano ser torcedor do maior inimigo, e, logo, tome catadupas de xingamentos em português, italiano e dialetos diversos, sempre de acordo com os resultados dos jogos entre Corinthians e Palmeiras, numa equação que acho melhor explicar: gozação era igual à resposta pesada, que evoluía para xingamentos onde as mammas eram frequentemente citadas pejorativamente; em seguida a esses prolegômenos orais, o couro roncava solto com eventuais clientes tentando tirar a navalha da mão do Dante enquanto os provocadores ou provocados desembestavam a correr em direção à Maria José, que ninguém é idiota pra ficar esperando ser retalhado pelo italiano furibundíssimo e olha que ele se “furibundava” por quaisquer dois mil réis! Aquela cabeça cheia de cabelos cheirando à Glostora ou à Quina Petróleo Juvênia era extremamente quente; provocar o homem não era uma boa idéia!
O salão do Dante era igualzinho a todas as barbearias da época: duas cadeiras Ferrante lado a lado e em frente à espelhos, uma estufa para aquecer toalhas de rosto que, diga-se de passagem, era mais um enfeite de parede do que um equipamento útil, creio até que nunca fora muito usada, algumas cadeiras comuns para se esperar a vez, uma pilha de revistas velhas: O Riso, O Governador, Noite Ilustrada, o Cruzeiro, Alterosa, Careta... Outrossim (opa!), informo que a barbearia ficava na Fortaleza, uma porta simples de frente a uma das entradas do ‘vilão’ (O ‘vilão’ era um grande cortiço que tinha duas entradas: pela Ruy Barbosa e pela Fortaleza e abrigava mais de 100 famílias. O local ainda existe hoje, mas sofisticou-se; não é mais cortiço, óbvio, é uma espécie de condomínio residencial; tem até nome pomposo: “Travessa dos Arquitetos”, chic, né?). Todo Bexiga sabia que o Dante era o maior ‘boca suja’ que Deus colocara no mundo, mas ninguém ligava, era tudo normal, pelo menos para ele!: - “Ecco! Io parlo palavró mesimo. Nasci ca boca chuja, porca miséria!”, dizia sempre que alguém reclamava de seus destemperos...
Tic, tic, tic...o pente separava os cabelos e a tesoura cortava aqui e ali e a conversa fluía, dizendo melhor, o monólogo comia solto: “ Us pessoar fala qui o Domenico da Guia é o milhó bequeira que ixisti, ma io non credo... inguar ao Grané num teve nem vai tê, Madonna mia... O Curintia era molto buono co Tuffy, co Grané, co Del Debbio...” , e tome histórias, lances, salames, brigas, causos e mais causos do futebol dos anos 20, 30 e 40... O Dante era um corintiano enlouquecido, sejamos sinceros...; morreu velhinho por volta de 1965, 66, numa fase em que o Corinthians não conseguia nada, títulos, vitórias retumbantes, nada, nada... ; deve ter morrido xingando.
O velho Dante veio à minha lembrança quando meu filho Júlio me presenteou com o DVD comemorativo do Centenário do Corinthians. Alguns jogos importantes foram filmados, inclusive um que acordou o velho barbeiro que dormia esquecido nos recônditos de minhas lembranças deslembradas: em 1929 o Corinthians disputou, creio, uma de suas primeiras partidas internacionais contra um time profissional italiano e venceu por 6 x 1 com 2 gols de Grané...
De repente voltei à minha infância no Bexiga num dia de muito calor. Estou sentado sobre uma tábua apoiada nos dois braços da cadeira de barbeiro. Meus pés estão soltos no ar – “num pisa nu istufamento qui e prá num chujá... dispois vem ôtro fregueis i chuja u rabu... num fica bem, né”? - e eu escuto pela milésima vez a descrição daquele longínquo jogo de 1929...
Setembro de 2010. Luzes apagadas na sala. O Júlio está configurando o DVD Player. Começa a reprodução. Estou vendo o Corinthians de 1929 numa TV de LCD de 56 polegadas em pleno século 21, 81 anos depois do fato ocorrido. Nó na garganta. Meu time entra em campo, olha lá o Tuffy, o Grané entra em campo sorrindo, Neco é aquele, será?
Estou vendo a minha São Paulo um ano antes da Revolução de 30.
Centenas de automóveis estacionados numa várzea cortada pela linha dos bondes que se dirigiam para o bairro da Lapa. Ao longe as ondulações da Serra da Cantareira. O Parque Antarctica lotado. Palhetas, bengalas, chapéus coco e gellot, ‘Theda’s Bara’ usando vestidos longos e chapeaux emplumados, sorrisos inocentes para a câmera que filmava... Meu pai, o velho Alcides, teria 17 anos na época. Estaria ele já em São Paulo, vindo da distante Conceição do Monte Alegre? Minha mãe, Dona Zezé, tinha 8 anos e ainda estava em São Manuel, cidade dos Barros e dos Melão, terra da dupla Tonico e Tinoco que ainda não eram ninguém. Eu? Eu nasceria 11 anos depois e mais tarde iria cortar cabelo na barbearia da rua Fortaleza...
A voz do Dante: - Quando o futebór terminô, vim vindo a pé da Pompéia até o largo do Piques, subi a Santantó e fui dormi. Nunca dormi tão gostoso, démo uma surra nus intaliano...
- Mas Dante, você é italiano! Não pode querer mal um time da sua Itália...
- Guarda..., na Itália io era italiano, mas tô no Brasile desde 1914 i no Brasile io sô brasiliano i corintiano, i num me importa os língua de trapo...
O Dante, com suas histórias, me fez admirar aqueles jogadores antigos, com seus longos calções de algodão, seus bonés e gorrinhos, seus bigodões, com suas chancas e com suas bolas de capotão. Jogadores que tinham nomes respeitosos: Imparato, Friedenreich, Amilcar, Grané, Del Debbio..., não havia os “inhos” da vida, os Ronaldinhos, os Marcelinhos, etc...
Grané, só vi você num relance, entrando em campo em 1929, num filmete de 40 segundos quando muito, mas você me fez lembrar um tempo em que um barbeiro do Bexiga contava suas façanhas com suas chancas de biqueiras metálicas... Quando vi o Corinthians de 1929 voltei a ser criança,... “minha mãe me deu dois mil e duzentos réis prá pagar o barbeiro e comprar um sorvete de palito na sorveteria do seu Giuseppe”...
Grané, sou seu fã ardoroso! Grazie, signore Dante, valeu!

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto