sexta-feira, 25 de novembro de 2011

INCIDENTE NA RODOVIA DOS IMIGRANTES


12 de setembro de 2011.

Minha mãe, Dona Zezé, 90 anos, queixa-se de mal estar, cansaço. Está muito ansiosa, mais do que de costume.
Meço a pressão arterial: 180x110mmHg. Procuro acalmá-la. Repouso, hiperventilação. Nova medição: 140x95mmHg. Melhorou um pouco. Telefonar para o convênio médico urgentemente. Ligação para Itanhaém, marcação de consulta com a médica geriatra quase que instantânea: - A consulta prá Dona Maria José eu ‘vou taRR agendando’ para hoje, às 10:00h. O horário está bom para o senhor?
- Não filha, não está! ‘Tou’ ligando de São Paulo e não vou chegar a tempo aí. Olha, são 9:00h! Me arruma outro horário na parte da tarde...
- E 01h da tarde? Dá pro senhor “taRR” chegando aqui?
- Dá! Obrigado...
- Então nós vamos “taRR” esperando a d. Maria José prá consulta às 13:00h. OK?
- ‘Tá’.
Explicando: minha mãe tem 3 convênios médicos (SUS, Servidor Público do Estado e o convênio pago pela Associação dos Funcionários da VASP), todos complicadíssimos para marcar consultas, exames, etc, aqui em São Paulo. Portanto, prefiro que minha mãe utilize o convênio da VASP no litoral, muito mais rápido e com um atendimento excepcional, apesar da super inflação de gerúndios e de estranhíssimas conjugações verbais...
Verificação no carro, aquela checagem manjada. Roupas no porta malas: - Pra quê tanta roupa, mãe? A gente vai, passa na médica, dorme em casa e amanhã nós voltamos numa boa, sem dramas.
- Lá faz frio, Ignacio. ‘Cê sabe que eu sou friorenta... Pegou minha bengala e o andador?
- Tudo bem, mãe. Não ‘tá’ mais aqui quem falou! Tá tudo aqui. Bengala, andador...
Chegamos às 11:30 h em minha casa em Mongaguá. Minha mãe descansou um pouco em seu quarto, tomou um cafezinho, comeu umas bolachinhas... 12:45 h estávamos na clínica, em Itanhaém, rápido, rápido.
Consulta, receita, pedido de exames de sangue e urina. Almoçamos em um restaurante, voltamos prá casa. Tarde tranquila. Assistiu TV (noticiário e novela) e foi dormir.

13 de setembro de 2011.
- Ignacio, eu quero ficar mais um pouco, vamos amanhã...
- ‘Tá bom...

14 de setembro de 2011.
- Vamos ficar mais um dia, Ignacio. Eu ‘tô’ um pouco cansada...
- Tudo bem, mãe... Eu já sabia... Mas, amanhã a gente volta prá São Paulo bem cedinho.
- Não, eu quero ir de tarde...

15 de setembro de 2011.
Almoçamos em um “por kilo” no centro de Mongaguá e pegamos a rodovia. Garoa, tempo enfarruscado, limpador de parabrisas zzzplac, zzzplac, zzzplac, pouco movimento na pista. Viajo sem pressa a 70, 80 km/h, às vezes caindo para 60. Minha mãe viaja a meu lado.
- Ignacio, tira esse cinto de mim... ele me aperta o peito...
- Não posso, mãe. É prá sua segurança...
- Mas me aperta e me dá falta de ar...
Pedágio em São Vicente: R$ 5,10.

O HORROR!... O HORROR!
(Joseph Conrad)

Começo a subida da serra. Inicia-se a sucessão de túneis. 13 túneis, número um pouco assustador para os mais supersticiosos. Na saída do 3º túnel entramos em uma nuvem, neblina muito densa. Diminuo a velocidade para 40 km/h. Dentro dos túneis, tudo bem. Praticamente é uma subida por dentro das montanhas e o único problema são os caminhões, as carretas, os transportadores de containeres que excedem de muito a velocidade permitida, que fazem ultrapassagens proibidas, que mandam a legislação de trânsito (e a boa educação) para as Cucuias! Há que se tomar muito cuidado, direção defensiva e muita fé.
Saio do último túnel e entro num limbo branco de neblina. Todas as luzes defensivas de meu carro estão acesas, faróis inclusive. Diminuo a velocidade para 20, 30 km/h. Um carro preto passa voando pelo acostamento, coisa de 80, 100 km/h. Uma carreta lonada, carregada, um bólido, desaparece na neblina pela direita. Cautelosamente continuo avançando, um olho nos retrovisores, outro olho à frente. 200 metros, 250. Vou como que tateando o caminho naquela escuridão branca. Passo pelo carro preto que acabara de trombar com a carreta que me cortara pela direita. Dois homens saíram do carro e estão correndo. Uma confusão à frente, cerca de 50 metros. Há uma brecha, vai dar prá passar, só acelerar um pouquinho. Explosão, um flash light avermelha a neblina. Um caminhão tanque batido começa a pegar fogo. Não dá mais para avançar. Preciso ir para o acostamento ou sair de vez da rodovia. Olho para o retrovisor. Outro estrondo fortíssimo. Um Doblö, literalmente voando, se choca contra meu carro. O mundo fica de ponta-cabeça. Por inércia, o caminhão que atirara o Doblö contra meu carro continua avançando e esmaga-nos. As pessoas gritam desesperadas. Ruídos de frenagens e batidas em sequência: bam, bam, bam, bam. Fumaça preta! Minha mãe grita:
- Pelo amor de Deus, Ignacio! A gente vai morrer, a gente vai morrer! O Alcides (meu falecido pai) tá vindo buscar a gente!
O choque arrancara os dois assentos do soalho do carro. Minha mãe está chorando...:
- A senhora ‘tá’ bem, mãe? Algum machucado?... Espera aí que vou soltar seu cinto...
O carro parecia um bandoneón e eu não conseguia abrir as portas. As trombadas continuavam, mais gritos, mais fogo, mais explosões. Porta malas, banco de trás, teto, desapareceram, melhor, viraram um amontoado de metais retorcidos. A neblina e o frio começam a nos fustigar. Vivos nós estávamos até aquele momento, mas tínhamos de sair daquela armadilha. Pessoas do lado de fora param de correr:
- Ajuda aqui, ‘vamo arrancá essa porta’! Tem dois ´véio’ preso aqui...
Conseguiram. Carregaram minha mãe até a grama. Eu corri também. Alguém estava sendo queimado vivo onde havia um fogaréu! Cheiro de carne queimada. Os gritos cessam, resta apenas o cheiro de carne queimando...
As explosões e batidas continuavam, também os gritos. Começam a chegar ambulâncias e carros de bombeiros vindos de Cubatão, de São Bernardo, de Diadema. Policial da PM sentado na grama, braço direito quebrado, parecendo um “W”. Lonas amarelas estendidas no chão recebem feridos. Atendimento médico. Mamãe recebe um crachá do SAMU com um código de cores. Pergunto o que significa. “Ela está bem”, um paramédico responde.
Frio, garoa. Estamos ensopados. Minha mãe está descalça, perdeu as pantufas no carro e eu perdi meu celular. Um anjo faz uma ligação para casa em São Paulo. Consigo falar com a Odete: - Está tudo bem, “Dé”! Mas, não sei o que vão fazer com a gente...
- Fica calmo, cuida de sua mãe. A Cláudia e o Marco estão indo aí, pegar vocês!
- Pegar como? A rodovia está bloqueada nos dois sentidos...
- Ignacio, deixa de ser bobo! Prá que você tem filho policial? Não esquenta não! De carteirada em carteirada, daqui a pouco eles estão aí. Fica frio...
- Mais?
De fato, não demoraram. O Marco conversou com seus colegas da PM e a Cláudia, como não tinha ninguém da polícia civil prá conversar, ficou no carro dela com a gente... Foi preciso negociar com os coordenadores do socorro a nossa saída. Conseguimos entrar no Rodoanel e vimos que, apesar de tudo o que acontecera e continuava acontecendo, os loucos continuavam à solta. Caminhões, carretas, carros, em alta velocidade na pista. Visibilidade reduzidíssima. Antes do pedágio, colisão. Caminhão encavalado sobre um Uno, coisa feia...
Embu, Régis Bittencourt, Taboão da Serra, Av. Prof. Francisco Morato, Ferreira, Vila Sonia, Caxingui, Previdência. 21:30h. Chegamos.
A Odete abraça minha mãe: - E aí, “cumadi” Zezé? Como é que foi a coisa? (A Odete nunca chamou minha mãe de sogra. Sempre a chamou de comadre e minha mãe sempre aceitou numa boa).
- Fiquei muito nervosa, passei frio. Lá no alto da serra faz muito frio... Tem janta?... ‘Tou com dor de cabeça... Me dá um comprimido... Vou tomar banho e vou dormir... O Ignacio esqueceu o meu andador e a bengala no carro! Ele não presta atenção nas coisas...
- ‘Tem importância não, “cumadi”; amanhã nós compramos uma bengala e um andador zero quilômetro prá senhora... Tudo folhado a ouro...
Fomos dormir passava da meia noite. Telefone não parava de tocar. Parentes querendo notícias, de Santos, de vizinhos de Mongaguá, meu cunhado da Praia Grande, parentes da Odete, de Franca, de Patrocínio Paulista. Tivemos nossas 3 ou 4 horas de fama!
Minha mãe ganhou um galo na cabeça; eu ganhei uma esfoladura no joelho direito.
A Odete, popularmente conhecida como Madame Sarcasmo:
- Um galo e um arranhão? Nem valeu a pena vocês se meterem nessa confusão toda e, ainda por cima com a perda total de nosso carro. Mas que merda heim? Da outra vez eu quero ver pelo menos um pouco de sangue...
- “Dé”. Não enche o saco... vamdormí...!
Tudo very British demais pro meu gosto... Mas, ainda estamos vivos.
 

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto