quinta-feira, 8 de março de 2012

SÃO PAULO, UM SONHO

Não é preciso ter poderes não-normais, sobrenaturais, para saber-se que a cidade de São Paulo tem lá sua alma  e seus mistérios e que seus cidadãos mais representativos (fundadores, pessoas que historiaram  a cidade, intelectuais, músicos, acendedores de lampiões, escriptores, palhaços, tonys, motorneiros de bonde, vagabundos, sambistas,  todos são uma essência de uma vida vivida, que ninguém é fisicamente eterno, pelo menos até prova em contrário!), repito, que seus cidadãos mais representativos continuam velando e observando o crescimento, o progresso ou o retrocesso da urbe selvática pela qual se sentem responsáveis, seus curadores. Isto posto e entendido, vamos entrar de uma vez na fantasia, no 'bem que as coisas poderiam ser assim', mesmo porque já estamos demorando  a apresentar os personagens dessa narrativa que, apesar de terem todo o tempo da eternidade para continuar vivendo em seus diversos planos espirituais, em seus infinitos universos paralelos, paulistanicamente vivem apressados. Eles virão aleatoriamente, tudo é aleatório, nada é planejado, mesmo a chegada ou a não chegada desses personagens; eles virão se quiserem ...
Vamos nos imaginar dentro de um universo de personagens criados por diversos autores, personagens esses tipicamente paulistanos; para esse exercício de imaginação há que se executar alguns rituais para convocar alguns desses criadores e eu - desculpem - tenho lá os meus. O primeiro criador a chegar é Marcondes Machado que nos aparece trazendo sua criatura, "il signore Juó Bananere". Juó vem pela mão de seu autor, irônico, resmungando, olha para mim com olhar desconfiado, enterra o chapéu no cocoruto...
Blém, blém, a sineta do bonde Bela Vista que vem descendo a Santo Antonio; vem a 8, diminui a marcha e para no Largo do Piques. Os passageiros descem, entre eles Charles Miller e seus bigodes enormes. Outras pessoas sobem, entre elas dona Zezé, minha mãe; os tempos se misturam, se entrelaçam. Blém, blém, o bonde parte e se perde na neblina, os condutores cantando: "dim, dim, dim, dim, dim, dim; um prá Light, dois prá mim...
Neste momento, enquanto escrevo, sinto uma presença forte  interferindo em meu raciocínio, falando aos ouvidos de minha alma (e alma existe? e se existe, alma  tem ouvidos?)  ... Milhor atender, deixál-a se expressar antes que a cousa toda e minhas idéas se confundam e fique eu perdido, como Macunaima na procura ingente do muiraquitã, entrando e saindo de estados e situacções não previstas; deixemos o barco correr ao sabôr da vellocidade das águas do Lettes, afluente etéreo e mictológico do Anhemby-Tietê que vem banhando os Campos de Piratininga desde os tempos iniciais.
É o Senhor Tempo quem me leva pela mão; agora estamos fluctuando sobre uma cidade que é só luz; não sei para onde estamos indo. Para onde o Tempo está me levando? Vamos para aquela geléa luminenta como uma nuvem de pirilampos?
Poetar? Gósto!  Ora por quem sois! Por ventura duvidais de minha métrica?
Maravilhamentos? Quéro-os! Peremptoriamente!
Sei que o Tempo vai atender aos meus pedidos de maravilhamentos, porque ele corre na maior vula, me arrasta e nos arrasta.  Grito, gargalho: - Aqui del rey, aqui del rey!;  a vertigem continua, um Parque Shangay a pleno e por todo tempo, subidas e descidas.
Conheço aquele maciço de pedra, aquele perfil de montanha; todos os dias eu o vejo a partir da ponte do Pinheiros, como quem olha-olhando em direção à Lapa, mas está bem diferente com toda aquela floresta chegando até seu cimo pontiagudo; parece  ser o Jaraguá coberto com um manto feito de parte da Hilaea Paulistana; definitivamente é o Jaraguá, a floresta ainda não foi derrubada, olho para trás e vejo que as luzes de São Paulo deram às de vila diogo, sorvetearam-se; a massa gelatinosa que me envolvia e me levava, apagou-se... me vejo dentro de um mundo estranho e frio, gelado e nevoento. Garua.
Garua?
É, garua, cáspite!


Voz que poeteja:
"Quando eu morrer quero ficar
Quando eu morrer quero ficar
Não contem aos meus inimigos
Sepultado em minha cidade
Saudade!"
(palmas, muitas palmas! algumas lágrimas...)
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir
O joelho na Universidade
Saudade..."
O poeta se inclina para a platéa e agradece as palmas e as lágrimas.
A voz  esganiçada e pernóstica vai cessando, diminuindo sua intensidade; fica apenas a figura estática, estatual, de Mário, que nos olha com seu olhar  através das lentes de seus óculos de tartaruga arlequinal, madrigal, fenomenal, "um sorriso de mulata sestrosa no canto dos lábios", no dizer de Oswald de Andrade ... (ao fundo, ouvimos os primeiros acordes de Viola Quebrada...)
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Do âmago do Jaraguá, mais vozes, música de banda. Sinfonia
gritos da criançada, estereofonia:  
"Hoje tem marmelada?
Tem, sim sinhô!
Hoje tem goiabada?
Tem, sim sinhô!
E o palhaço? Quem é?
É ladrão de muié!!!"Alegria


Piolim, Arrelia, Espirro, Chicharrão levando Torresmo pela mão, dezenas de palhaços, rostos pintados, narizes de bolotas, acrobatas, Tony's, leões, elefantes, camelos, ponneys, carroças, anões, trapezistas voando sobre minha cabeça, tudo passando muito rapidamente, num borrão de cores, de luzes, de sons, num velocíssimo slow motion no céu do Paissandu. Cacofonia, policromia.


Castro Alves não vai às aulas na Academia?
 Vai para a casa das mulheres? Orgia;
Vai caçar no Bráz e toma um tiro acidental. Sabe que vai morrer por causa disso...Agonia
Lá vem Geraldo Filme, cuspindo de lado, terno completo e gravata, sapatos pretos lustrosos, assobiando seu último samba de enredo. Maravilha.

Coxinhas, quibes, esfihas, perfume de pizzas assando em fornos por toda a cidade. Gastronomia.
Zé Marmiteiro salta das páginas do Correio Paulistano para o encontro com Juca Pato que saiu às escondidas da Folha da Manhã. Vão se encontrar na esquina da Av. Ypiranga com São João; os dois, num cochilo do prof. Nelo e de Belmonte, vêm ao mundo surreal para falar sobre São Paulo... A discussão  vai durar a eternidade! Continuemos prestando atenção aos maravilhamentos que o Senhor Tempo nos propicia enquanto o tempo relogial não termina...  Melancolia?


São Paulo guaianá/guarany
Anhangabau, Tucuruvi,
Anhanguera, Tamanduateí,
Jabaquara, Caxingui,
Quitanduba, Morumby,
Sapetuba, Panamby...
 O sangue da terra, os índios de Tibiriçá, Anchieta, Nóbrega, Cunhambebe, é nóis na fita, valei-me São Jorge Ogum, meu pai justiceiro e vingador, meu orixá guerreiro, São Paulo  do nhengatu e  iorubá, dos dialetos da Itália, do alemão e do ídiche... Algaravia


São Paulo, São São Paulo, meu amor.
Tom Zé, embora renitente, paulistanizou-se; de réiva, mantem o sotaque bahiano com dificulidade; a vizinhança com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, com o Prof. Dr. Alexandre Mello Filho e com oS paulistaníssimos bairros de Higienópolis e Perdizes não permite que ele baianize a cidade; todos vão passando, tudo vai passando, depressa, depressa, depressa... Mais pessoas vão chegando, vultos fantasmais, avuando, avuando, avuando...
E chegam os vultos, quais fantasmas de Shakespeare,  de Armando Rosas e Oswaldo Molles, que escreveram Histórias das Malocas, que criaram o Charutinho que, por sua vez, marionetou o Juó Rubinato, inventor do Adoniran Barbosa ator, e que o interpretou até morrer; assim Adoniran ganhou vida e viveu até seus últimos dias falando errado e vestindo-se como o personagem. Molles e Rosas, inventores de mitos, silentes, felizes por serem esquecidos pela turba...ICONOCLASTÍA!


Já se passaram mais de dous segundos. Milhor voltar, escrever, tomar da penna, seguir os versos da canção:
"Quando se sente bater
No peito heróica pancada
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer..."      (Tobias Barreto grita desesperado do fundo de não sei  onde: " O verso é meu, o verso é meu...! Lembrem-se de mim, lembrem-se de mim!)
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Sou parido pelo Jaraguá; voo dentro de uma placenta sobre a cidade amanhecente. Milhões de automóveis, trens, metrôs, ronco de aviões, gritos, tiros, risos, choros, glub, glub, a pinga, a cerveja descendo goela a baixo. Pingado e pão com manteiga na chapa! Polifonia 


O ruído do mar  nos sonhos malucos de Cásper Líbero: " Vou erguer um prédio de 60 andares na Av. Paulista... Do último andar poderei ver o mar..." Maresia


Pouso, aterrizo (?), volto à mim. Estou no Caxingui, em minha casa. Torcedores do São Paulo Futebol Clube passam pela avenida em direção à Pinheiros; eles vem depredando orelhões, quebrando vitrines. Meu filho tranca os portões gradeados de minha casa-prisão. Talvez os corinthianos estejam fazendo o mesmo em outro corredor de despejo de torcedores e outros pais estejam trancando suas casas-prisões...
Verticais, horizontais, altos e baixos; são muitos os ângulos pelos quais São Paulo pode ser vista e comprendida. Trigonometria
Definitivamente estou em São Paulo, não há como fugir dessa cidade cheia de amor e de ódio.
Karma, 
Destino.
Ah! Mario, Mario de Andrade, ora pois, pois!

p/ Joaquim Ignacio de Souza Netto

domingo, 22 de janeiro de 2012

IV Centenário, os anos voam. A Vila Clementino de minha infância e adolescência.


Comecei a frequentar o bairro da V. Clementino em 1944 ou 45, época em que meus avós maternos vieram de São Manoel para São Paulo, numa aparentemente simples troca de santos e de cidades. No duro, no duro, essa mudança acarretou uma inversão total no modo de vida da família de minha mãe que, de trabalhadores caipiras renitentes, passaram a ser habitantes de uma grande cidade e precisaram adaptar-se de imediato, até por uma questão de sobrevivência; foram ajudados por meu pai (já estávamos em São Paulo naquela época) com procura de casa para alugar e algumas cartas de referência para obtenção de empregos para os filhos mais velhos, meu tio Mané e minhas tias Lucila, Ignes e Célia. Foram morar num grande sobrado, misto de residência e cortume, que ficava em frente ao Matadouro Municipal (hoje as dependências do antigo Matadouro abrigam a Cinemateca Brasileira). Meu avô, João Pedro da Silva, empregou-se no cortume e exercia as mesmas funções, entre muitas, que exercia em São Manoel, magarefe e curtidor de couros...

Queixavam-se do mau cheiro a que não estavam acostumados, de urubus pousados nas árvores, no telhado ou andando com suas passadas malandras pelo quintal que servia de local para secagem das peles. Todos trabalhando, uma melhoradinha na situação financeira, mudaram-se para a Borges Lagoa, 1064, quase ao lado da igreja protestante, acho que em 1946.

Fins dos 40s e início dos 50s, boa parte das ruas da V. Clementino não tinha calçamento, Borges Lagoa, Loefgren, Dr. Bacellar, 11 de Junho, Leandro Dupré, Diogo de Faria, Botucatu, Otonis, a exceção era a Pedro de Toledo, asfaltada... No quarteirão da Borges entre a Leandro Dupré e a Bacellar, os sócios e torcedores do Rubens Salles FC jogavam malha no meio da rua, ou bocha numa quadra montada junto à sede do time. Havia o boteco do Mandioca, frequentado pela fina flor dos encrenqueiros do bairro, a padaria Chave de Ouro, a farmácia do 'seu' José, a capela de São Francisco de Assis, a Escola de São Francisco e muitos terrenos baldios e algumas chácaras beirando a Auto Estrada de Santo Amaro, caminho do aeroporto e além...

Em 1949, o antigo zagueiro da seleção brasileira, o "pai" Jau, após uma partida de seu time de veteranos contra o Rubens Salles FC, levou meu tio Mané para treinar no Corinthians após vê-lo jogar. Infelizmente a carreira do meu tio terminou no primeiro treino; por precisar trabalhar não poderia comparecer quase que diariamente ao Pq. São Jorge e então precisou continuar sua vida de rapaz pobre, boleiro "leão de várzea", com pouca cultura, trabalhando como operário em uma fábrica de artigos de borracha...

Ainda em 1949 meus avós mudaram-se para a Leandro Dupré, 655, numa espécie de vila com 03 casas, muitas árvores frutíferas, abacateiros, marmeleiros, caquizeiros e parreiras de uvas... Acabou que, em 1950, após ganhar um bom dinhiro no jogo de bicho e conseguir um ótimo emprego na VASP, meu pai alugou por Cr$ 1.500,00 mensais a melhor casa da tal vila; foi quando saimos do cortiço do Bexiga e nos mudamos para uma casa de verdade. Na Vila Clementino, eu, com meus 10 anos, comecei a aproveitar minha infância, um tanto que tardiamente. E, um tanto que tardiamente, tive meus primeiros amigos: os irmãos Toninho e Clóvis do 636, o Vadão, neto da d. Belmira, o Fasolim, filho do 'seu' Canhoto, o Astor e o 'Piturico' da 11 de Junho, o Carlito e alguns outros que vez ou outra apareciam por lá, inclusive um garoto chamado Miguel, que passava férias e feriados na casa dos pais do Toninho e do Clóvis, o 'seu' Zeca e a d. Helly. Morador do Bexiga, como eu fora, o Miguel se extasiava com o contato com a natureza, e com as nossas brincadeiras só possíveis num ambiente amplo, de liberdade sem riscos e de ar puro, com o nosso santo futebolzinho de todos os dias, com nossos primeiros olhares de peixe morto para as meninas...

No entanto, aquele paraiso não deveria durar muito, era bom demais para continuar existindo. A cidade estava se preparando para os festejos do IV Centenário, construções surgiam por todo o bairro, ruas eram, digamos, asfaltadas com o tal "virado à paulista", areia, brita fina e pixe derretida, uma droga. A Loefgren era a rua onde jogávamos taco e precisamos abandoná-la para que automóveis começassem a usá-la, imaginem só!, num total desrespeito às nossas necessidades lúdicas, nós, crianças e adolescentes. Naqueles anos risonhos e francos, me parece, as instituições benemerentes não tinham nomes politicamente corretos; alguns exemplos: AACD (Associação de Auxílio à Criança Defeituosa), Roda dos Enjeitados, Casa da Mãe Solteira (atual Amparo Maternal). A AACD ficava (e fica) no fim da Loefgren e a Casa da Mãe Solteira ficava (e fica) na Loefgren com a Capitão Macedo. Pois bem, entre uma instituição e outra, eram quadras e quadras de terrenos baldios que eram o nosso play-ground com campinhos pro bate-bola, áreas com uma mata um pouco maior, bambuzais, pés de gabiroba, bananeiras...

Um dia, tudo acabou. Caminhões e mais caminhões começaram a despejar areia e brita em nosso paraiso. De repente, toda aquela area se transformou num Saara de areia e pedra. No local foi construida uma usina de concreto para as obras do Parque do Ibirapuera. Barulho infernal, pó de cimento, caminhões, incômodos nas 24 horas do dia, 7 dias por semana. Nosso quarteirão da Leandro Dupré se transformou numa sucursal do inferno e as coisas foram piorando até atingir o paroxismo quando o campo do Rubens Salles, na Pedro de Toledo, acabou e todo aquele chão varzeano cheio de história transformou-se num condomínio residencial; o mesmo aconteceu com o campo do 21 de Abril e com os campos além Auto Estrada que deram lugar a complexos hospitalares (Servidor Público do Estado, Gastroclínica...). A própria Auto Estrada de Santo Amaro acabou por dar lugar à Av. Ruben Bertha...

Era 1954, era hora de a gente crescer, começar a usar calças compridas,   sapatos com meias o dia todo, usar Odorono nas axilas, aprender álgebra e latim...

Despedi-me da V. Clementino em março de 54. Durante algum tempo ainda mantive contato com os amigos, mas, aos poucos, cada um seguiu sua vida e nos dispersamos. Daquele tempo, apenas o garoto Miguel colocou o rosto fora d'água 60 anos depois, e a gente se comunica através de sites para os quais escrevemos...

Esta cidade de São Paulo não é fácil, minha gente! tudo é muito rápido, o tempo voa, os anos passam muito depressa e nós não nos apercebemos disso; ontem mesmo nosso caminhão de mudança desceu a Leandro Dupré e parou em frente à casa em que nós iremos morar.
Dá prá acreditar?...

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto