domingo, 22 de janeiro de 2012

IV Centenário, os anos voam. A Vila Clementino de minha infância e adolescência.


Comecei a frequentar o bairro da V. Clementino em 1944 ou 45, época em que meus avós maternos vieram de São Manoel para São Paulo, numa aparentemente simples troca de santos e de cidades. No duro, no duro, essa mudança acarretou uma inversão total no modo de vida da família de minha mãe que, de trabalhadores caipiras renitentes, passaram a ser habitantes de uma grande cidade e precisaram adaptar-se de imediato, até por uma questão de sobrevivência; foram ajudados por meu pai (já estávamos em São Paulo naquela época) com procura de casa para alugar e algumas cartas de referência para obtenção de empregos para os filhos mais velhos, meu tio Mané e minhas tias Lucila, Ignes e Célia. Foram morar num grande sobrado, misto de residência e cortume, que ficava em frente ao Matadouro Municipal (hoje as dependências do antigo Matadouro abrigam a Cinemateca Brasileira). Meu avô, João Pedro da Silva, empregou-se no cortume e exercia as mesmas funções, entre muitas, que exercia em São Manoel, magarefe e curtidor de couros...

Queixavam-se do mau cheiro a que não estavam acostumados, de urubus pousados nas árvores, no telhado ou andando com suas passadas malandras pelo quintal que servia de local para secagem das peles. Todos trabalhando, uma melhoradinha na situação financeira, mudaram-se para a Borges Lagoa, 1064, quase ao lado da igreja protestante, acho que em 1946.

Fins dos 40s e início dos 50s, boa parte das ruas da V. Clementino não tinha calçamento, Borges Lagoa, Loefgren, Dr. Bacellar, 11 de Junho, Leandro Dupré, Diogo de Faria, Botucatu, Otonis, a exceção era a Pedro de Toledo, asfaltada... No quarteirão da Borges entre a Leandro Dupré e a Bacellar, os sócios e torcedores do Rubens Salles FC jogavam malha no meio da rua, ou bocha numa quadra montada junto à sede do time. Havia o boteco do Mandioca, frequentado pela fina flor dos encrenqueiros do bairro, a padaria Chave de Ouro, a farmácia do 'seu' José, a capela de São Francisco de Assis, a Escola de São Francisco e muitos terrenos baldios e algumas chácaras beirando a Auto Estrada de Santo Amaro, caminho do aeroporto e além...

Em 1949, o antigo zagueiro da seleção brasileira, o "pai" Jau, após uma partida de seu time de veteranos contra o Rubens Salles FC, levou meu tio Mané para treinar no Corinthians após vê-lo jogar. Infelizmente a carreira do meu tio terminou no primeiro treino; por precisar trabalhar não poderia comparecer quase que diariamente ao Pq. São Jorge e então precisou continuar sua vida de rapaz pobre, boleiro "leão de várzea", com pouca cultura, trabalhando como operário em uma fábrica de artigos de borracha...

Ainda em 1949 meus avós mudaram-se para a Leandro Dupré, 655, numa espécie de vila com 03 casas, muitas árvores frutíferas, abacateiros, marmeleiros, caquizeiros e parreiras de uvas... Acabou que, em 1950, após ganhar um bom dinhiro no jogo de bicho e conseguir um ótimo emprego na VASP, meu pai alugou por Cr$ 1.500,00 mensais a melhor casa da tal vila; foi quando saimos do cortiço do Bexiga e nos mudamos para uma casa de verdade. Na Vila Clementino, eu, com meus 10 anos, comecei a aproveitar minha infância, um tanto que tardiamente. E, um tanto que tardiamente, tive meus primeiros amigos: os irmãos Toninho e Clóvis do 636, o Vadão, neto da d. Belmira, o Fasolim, filho do 'seu' Canhoto, o Astor e o 'Piturico' da 11 de Junho, o Carlito e alguns outros que vez ou outra apareciam por lá, inclusive um garoto chamado Miguel, que passava férias e feriados na casa dos pais do Toninho e do Clóvis, o 'seu' Zeca e a d. Helly. Morador do Bexiga, como eu fora, o Miguel se extasiava com o contato com a natureza, e com as nossas brincadeiras só possíveis num ambiente amplo, de liberdade sem riscos e de ar puro, com o nosso santo futebolzinho de todos os dias, com nossos primeiros olhares de peixe morto para as meninas...

No entanto, aquele paraiso não deveria durar muito, era bom demais para continuar existindo. A cidade estava se preparando para os festejos do IV Centenário, construções surgiam por todo o bairro, ruas eram, digamos, asfaltadas com o tal "virado à paulista", areia, brita fina e pixe derretida, uma droga. A Loefgren era a rua onde jogávamos taco e precisamos abandoná-la para que automóveis começassem a usá-la, imaginem só!, num total desrespeito às nossas necessidades lúdicas, nós, crianças e adolescentes. Naqueles anos risonhos e francos, me parece, as instituições benemerentes não tinham nomes politicamente corretos; alguns exemplos: AACD (Associação de Auxílio à Criança Defeituosa), Roda dos Enjeitados, Casa da Mãe Solteira (atual Amparo Maternal). A AACD ficava (e fica) no fim da Loefgren e a Casa da Mãe Solteira ficava (e fica) na Loefgren com a Capitão Macedo. Pois bem, entre uma instituição e outra, eram quadras e quadras de terrenos baldios que eram o nosso play-ground com campinhos pro bate-bola, áreas com uma mata um pouco maior, bambuzais, pés de gabiroba, bananeiras...

Um dia, tudo acabou. Caminhões e mais caminhões começaram a despejar areia e brita em nosso paraiso. De repente, toda aquela area se transformou num Saara de areia e pedra. No local foi construida uma usina de concreto para as obras do Parque do Ibirapuera. Barulho infernal, pó de cimento, caminhões, incômodos nas 24 horas do dia, 7 dias por semana. Nosso quarteirão da Leandro Dupré se transformou numa sucursal do inferno e as coisas foram piorando até atingir o paroxismo quando o campo do Rubens Salles, na Pedro de Toledo, acabou e todo aquele chão varzeano cheio de história transformou-se num condomínio residencial; o mesmo aconteceu com o campo do 21 de Abril e com os campos além Auto Estrada que deram lugar a complexos hospitalares (Servidor Público do Estado, Gastroclínica...). A própria Auto Estrada de Santo Amaro acabou por dar lugar à Av. Ruben Bertha...

Era 1954, era hora de a gente crescer, começar a usar calças compridas,   sapatos com meias o dia todo, usar Odorono nas axilas, aprender álgebra e latim...

Despedi-me da V. Clementino em março de 54. Durante algum tempo ainda mantive contato com os amigos, mas, aos poucos, cada um seguiu sua vida e nos dispersamos. Daquele tempo, apenas o garoto Miguel colocou o rosto fora d'água 60 anos depois, e a gente se comunica através de sites para os quais escrevemos...

Esta cidade de São Paulo não é fácil, minha gente! tudo é muito rápido, o tempo voa, os anos passam muito depressa e nós não nos apercebemos disso; ontem mesmo nosso caminhão de mudança desceu a Leandro Dupré e parou em frente à casa em que nós iremos morar.
Dá prá acreditar?...

Por Joaquim Ignacio de Souza Netto


 

 

 

 

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