domingo, 4 de dezembro de 2011

NATAL, NATAL, NATAL, BLÉM, BLÉM, BLÉM, BANG, BANG

1984, 1985, já se passou muito tempo dos fatos ocorridos.
Noite de Natal. Estou de plantão no Pronto Atendimento (P.A.) Municipal do Jd. Arpoador, um dos bairros/quebradas do Butantã nas bandas da Raposo Tavares. Como não poderia deixar de ser, faz frio, o posto está cheio de gente e os médicos ainda não chegaram para assumir seus plantões.
7:00h da noite.
Enquanto os "dotô" não chegam, nós, Enfermagem, vamos adiantando o expediente, preenchendo formulários, desarquivando prontuários, preparando as salas de curativos e pequenas cirurgias, conferindo as medicações de tarja preta, ouvindo reclamações e ameaças de depredação e espancamento o tempo todo, um ambiente ideal para quem gosta de viver perigosamente (P.A. de periferia não é bolinho, minha gente!).
- Êpa, chegou a dra. X; vou colocando as fichas e prontuários no consultório, que ela está estacionando o carro, "vamo-que-vamo"..., ainda bem que chegou alguém...
Vozerio no salão de espera:
- Chegou a 'dotora'... esses médico véve atrazado...
- Vai vê essa vaca 'tava' em argum motér da Raposo e perdeu a hora... eu conheço essa gente... essa gente num presta..., ainda mais uma médica gostosa dessa...
- Ô pessoar, si argum arguém docês mordê a língua morre envenenado...
A dra. X chega à porta do consultório:
- Senha nº 1, podentrá...
Aos poucos vão chegando o médico chefe do posto e a Dra Y e, então, o 'bonde' começa a andar...
11:00h da noite
O movimento caiu , bebuns foram atendidos e dispensados (... eu só vim prá tomar uma 'gricose' nos 'cano' e já vou imbora...), alguns casos de 'espirrose aguda', uma diarréia aqui e ali, um ou outro caso de 'esculhambose' na coluna ...(viu dotô, fui inchê uma lajia pro visinho e fudi co espinhaço! Tem jeito de dá um tranco prá pô o espinhaço no lugá?...), os hipocondríacos foram atendidos e medicados com drágeas de "substância G" (açúcar) e totalmente curados, sendo dispensados sem receita ou pedido de exames e com a recomendação de retornar no caso de os "sintomas" voltarem...
A Ceia de Natal já estava sendo preparada por nossas colegas de Enfermagem e pelas médicas e tudo levava a crer que seria deliciosa: cafe com leite, 3 "frangos à manivela" de padaria, algumas garrafas de guaraná e coca-cola e sanduiches de pão de forma com um patê de sardinha em conserva e maionese indusrial, um opíparo banquete (certa vez, numa das últimas entrevistas que Procópio Ferreira concedeu, êle usou esses termos - opíparo banquete - que, pessoalmente, eu achei pedante, deslocado do contexto da entrevista, não eufônico, demonstração do uso de uma falsa condição cultural; no Brasil, no sermo vulgaris, ninguém fala desse jeito e, só porque lembrei do nariz do Procópio, resolvi usar a frase)!
Não conseguimos celebrar o nascimento do Menino e, muito menos participar da ceia, aliás, não teve ceia de Natal porque naquela noitemadrugada, o 'couro comeu largado'... Quase meia noite, duas viaturas da PM descem, de ré, a rampa que leva à porta do P.A., sirenes explodindo em som, encrenca da braba! Macas e cadeiras de roda na porta! Dois casos: um homem com FAF (Ferimento por Arma de Fogo) e uma gestante em trabalho de parto.
- Anda, anda, depressa com as coisas, baleado na sala de curativos, o cara tá sangrando muito. Acho que algum vaso grande tá estourado, a subclávia talvez, orifício de entrada: região escapular direita, não há sinal de saída; no mínimo pneumotórax também, não dá prá nós cuidarmos aqui, curativo compressivo bem apertado, ambulância e HC, a dra. Y acompanha... e chama uma menina prá te ajudar com esse parto...
- 'Peraí', doutor! que conversa é essa de "me ajudar com o parto"? Eu nunca fiz um parto em toda minha vida...
- Vai se paramentar, calça as luvas, que hoje voce vai fazer o seu primeiro parto...
- Mas doutor...
- Que cazzo, Joaquinzão! O cara aqui tá sangrando muito, não dá prá mim largar prá partejar essa mulher... deixa de resmungar que nem velho... essa criança vai sair sózinha... o que não dá é prá por a criança de volta!
- Muito engraçado, doutor...
A mãe acabou dando a luz em pé e eu e a Marisa apenas aparamos a criança para que ela não caísse de cara no chão, o que, definitivamente, não seria um bom começo de vida numa noite de Natal. Mãe, nenê e placenta foram encaminhados para a (antiga) Maternidade da Lapa para término de procedimentos.
E o baleado? O que foi feito dele? Bem, essa é uma outra história absurda daquele Natal inesquecível: diminuido o sangramento, o paciente foi levado para o HC com acompanhamento da Dra Y e deve ter sobrevivido (pelo menos daquele tiro); minutos depois da saída da ambulância com o ferido, o PA foi invadido por um bando que, simplesmente, foi lá prá acabar com a vida do baleado... Ameaças, os consultórios e salas de procedimentos revirados, gritos, correrias, tiros para cima, debandada geral. Pulei uma janela e caí em cima do meu próprio carro (uma Brasilia sofrida). Entrei na Raposo voando baixo, uns 60 por hora... 03:00h da manhã, d. Odete espantou-se com minha chegada:
- Ué! liberaram você mais cedo? 'Tá tudo bem? Tudo bonitinho?
- 'Tá tudo bem...Feliz Natal...
- Prô 'cê também!
- Vamdormí que daqui a ouco eu pego no HC...
- 'Cê tá esquisito! Tá tudo bem, mesmo?
- 'Tá! Eu ajudei num parto...
- Gostou? Menino ou menina?
- Um menino, a mãe quer dar meu nome prá ele e eu disse que não, meu nome não cai bem prum recém-nascido, é nome de adulto...
- Que coincidência, heim?
- ???
- Natal, parto, menino, entendeu?
- Entendí, só que os Reis Magos chegaram atirando...
- Agora sou eu que não entendi...
- Não esquenta, depois eu te explico com mais calma...
- Tchau então, parteiro...
- Num enche, Dé! Vê se dorme... tchau!