terça-feira, 11 de outubro de 2011

A NOITE DE SÃO PAULO TAMBÉM TEM SEUS MISTÉRIOS

...naquela 'noitemadrugada' de segunda feira, dia de Exu Alegbá, após uma gira no páteo do Vaticano que servia como terreiro do candomblé de Mãe Jurema - afamada e poderosa Yalorixá - ele desapareceu.
Algumas pessoas dizem que ele sumiu numa nuvem que, de repente, cobriu todo o cortiço; outros afirmam de pés juntos que ele se transformou num bode preto e que desandou a correr, apoiado nas patas traseiras, pela rua Santo Antonio e se perdeu de vista no Anhangabau.
Um outro grupo afirmava que ele se jogou numa grande fogueira que ardia no terreiro e subiu para Olorum num vórtice de fagulhas...
Nunca mais foi visto ou nunca mais se deixou ver.
Mãe Jurema dizia que ele tinha se transmudado em uma entidade, que ele deveria ser cultuado e alimentado nas encruzilhadas do centro da cidade, centro que, durante toda sua vida vivida por 70 anos, fora seu campo de batalha e seu domínio.
Começava assim a 'lendistória' de Manézinho das Mulheres, malandro do bem, figura querida por todos, amado por todas as mulheres, grande jogador de futebol varzeano, amigo dos amigos, filho dileto dos Orixás, babalorixá dos grandes cortiços do Bexiga, saravá Xangô!
Manoel Pereira da Silva - existe nome mais brasileiro? - até os acontecimentos daquela segunda feira, era morador do Vaticano onde nasceu, cresceu, morou e viveu seus melhores dias. Funcionário público do municipio, conseguira seu emprego graças aos conhecimentos de Mãe Jurema, mãe postiça e madrinha, que o adotara in pectore, após a morte de sua mãe, a comadre Mariinha, que, coitada, morreu dias após lhe dar a luz, vitimada por uma infecção terrível, apesar das cartilhas que o Dr. Arnaldo distribuia para as aparadeiras: Lavem as mãos, usem toalhas limpas, não deixem sangue nas cavidades, desinfetem as tesouras e pinças...
Criado por uma Yalorixá, claro que seria dedicado aos Orixás, nem duvidar...
Quando, ainda tatibitate, engatinhando e dando os primeiros passos, foram jogados os búzios para saber quem seriam seus pais ancestrais: ao primeiro Odu respondeu Exu Alegbá. |
Ao segundo Odu, a resposta foi de Xangô.
No terceiro Odu, a grande mãe Yemanjá, a Mãe do mundo. derramou seu leite sobre ele. Eram esses os pais ancestrais africanos de Manuel Pereira da Slva, bem mais tarde conhecido em São Paulo como Manézinho das Mulheres.
Desde criança saía com Mãe Jurema para arriar os 'trabalhos' em diversos lugares da cidade: na rua do Carmo com Tabatinguera, ao lado da Igreja da Boa Morte; na Vergueiro, ao lado da Igreja dos Enforcados. No Saracura, no Bexiga velho,  arriavam muitas velas e muita comida de santo e ela não perdia a ocasião prá mostrar o porque das coisas:
- "Mané, aqui é lugar onde muito nêgo foi enterrado nesses matos, 'morridos ca bexiga'. Os antigos num tinha vacina qui nem hoje e eles morria ca variola ou ficava marcado 'cocorpo' cheio das bereba moiada e das bereba seca, 'cacara' toda furada. Os moço ainda sarava, mas as criança e os véio morria tudo... Minha falecida avó era cativa de ganho e contava prá gente que quando começava a 'pidemia' de bexiga, as pessoa num podia chegar perto, só quem já tinha tido e num tinha morrido. Os cadavi tinha de sê enterrado fora da cidade, bem longe, muito longe, porque as bexiga 'pegava'. A Senhora Marquesa de Santos, D. Domitila, deu um terrenão prum cemitero na subida da Consolação , no rumo do Caaguaçu e de Pinheiros, prá enterrá a brancaiada que morria cas bôlha da varíola. Os nego, qui nem nóis, num podia enterrá no nosso cemitero da Misericórdia. Tinha de enterrá fora da cidade qui nem os branco. Os malungos, então, punha os difunto, 3, 4 duma veis, numa jangada e subia o Saracura Grande até o pé do Caaguaçu, no encontro co Saracura Pequeno e enterrava os irmão lá...Os antigo chamava o lugar de 'mata da bexiga' e o nome ficou até hoje".
Os despachos para o Alegbá eram feitos na chegança da Hora Grande, meia noite, no maior silêncio e respeito e sempre no Largo da Misericordia. Velas, alguidares, farofa amarela, quiabo, galinha assada, pinga, pipoca...
Os atrasados que iam para a Sé ou para a Xavier de Toledo para tomar os últimos bondes, os 'negreiros', alguns ao passar pela Misericordia apertavam os passos após uma olhada de esguelha para aquela senhora e a criança que acendiam velas e jogavam pipocas por todo o Largo da Misericordia; alguns outros paravam um pouco na esquina da Quintino com a Direita, olhavam a cena espantados, faziam o sinal da cruz e seguiam em frente resmungando: - ...essa negrada... onde já se viu!... desrespeito!...e a polcia tá aí praquê?...
O Largo da Misericordia, para os paulistanos iniciados no Candomblé e na Umbanda, era, talvez, o lugar de maior respeito; sob os paralelepípedos, sabiam, havia um cemitério, o único que podia receber os corpos dos malungos; ali era o local onde se erguera a primeira igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o campo santo de frente prá Santa Casa nos anos de 1700. Então, todas as oferendas que devessem ser feitas na Kalunga, eram feitas na Misericordia, rituais impossíveis nos Enforcados e suas mortes com muito sofrimento e nem na Boa Morte, prenúncio da morte na forca, a antecipação do sofrimento físico! O campo santo da Misericordia era o único lugar da cidade de São Paulo onde os antigos malungos mortos repousavam em paz!
Aos 14 anos, no cumprimento de sua segunda 'obrigação', começou a sentir uma presença, algumas presenças, dizendo melhor. Assustado, só se acalmou quando Mãe Jurema explicou que, a partir de então, viveria num mundo diferente do mundo dos demais viventes, que se acostumasse.
Quando arriava os despachos na praça em frente à Igreja dos Enforcados ouvia o choro de centenas de vozes e sombras que flutuavam na noite. Na Igreja da Boa Morte, ouvia soluços, imprecações e o rumor de centenas de vozes rezando... Na Misercordia ele via, nitidamente, um homem bem vestido, sentado no calçamento ou no meio fio, fumando e acompanhando os trabalhos:
- Mãe Jurema, a senhora 'tá' vendo aquele homem sentado ali?...
- Não, não tô vendo, mas deve ser o senhor Exu Elegbá, seu pai protetor. Não se preocupe, é assim mesmo...
Você represa ou desvia o curso de um rio, é uma possibilidade, mas você não consegue parar ou desviar a marcha do tempo. Carapinha branca, Manoel Pereira da Silva se deu conta que o tempo passara voando e êle sentia que estava chegando a sua hora. Os buzios tinham dito que sua jornada terminaria aos 70 anos, nem mais, nem menos, que ficasse preparado pois só haveria axexé!
Mãe Jurema já passara dos 100 anos, lúcida, cada vez mais sábia e com uma dificuldade muito grande de locomover-se; valia-se muito dos préstimo de Manézinho das Mulheres.

Manézinho? Pensativo, se acabrunhando sempre que ouvia no rádio um samba cantado pelo Sílvio Caldas. Sentia-se retratado nos versos da canção:
"Nos olhos das mulheres,
no espelho do meu quarto
é que eu vejo minha idade.
O retrato na sala
faz lembrar com saudade
a minha mocidade..."
Pensativo, pensou.
Pensou e pesou tudo o que havia feito, não feito, sentido e não sentido. Nunca magoara ninguém, era uma pessoa simpática, divertida, piadista. Era também o rei da mulherada. Deixou filhos e filhas, carradas deles, no Brás, Bexiga e Barra Funda. As mães desses filhos e filhas, negros, mulatos, sararás, filhos de diversos sangues, o adoravam, fariam tudo por ele. Na festa dos Ibejis, de Cosme e Damião, levavam as crianças para serem abençoadas por Mãe Jurema e por êle, o Manézinho das Mulheres, o pai negro que povoou o Vaticano e arredores e, essas crianças, crescidas, levavam seus filhos para conhecerem a bisavó e o avô e serem, tambem, abençoados...
Sonhou.

Exu Alegbá bafora a fumaça de seu charuto em seu rosto adormecido.
Xangô encosta seu machado de duas lâminas em seu corpo e sorri.
Yemanjá, mãe negra de fartos seios, acomoda sua cabeça em seu colo e suas mãos  acariciam a carapinha branca.

Manézinho das Mulheres está atento em seu sono.
Diz Yemanjá: -Meu filho, meu filho, te espero no Niger e no Zambeze...Vais conhecer todos os seus Egunguns.
Diz Xangô: - Você, meu filho, foi um homem justo. Foi feliz e fez a felicidade de muitos e muitas...
Diz Exu Alegbá: - Amanhã venho te buscar. Você foi um bom filho, sempre me respeitou... Amanhã, amanhã, amanhã...
Segunda feira, gira de Exu Alegbá!
Uma nuvem baixa e cobre todo o cortiço enquanto milhares de fagulhas sobem de uma fogueira... Alguns dos adeptos assistem assustados como que uma sombra se materializar e deslizar em direção à rua Santo Antonio. Manézinho que estava no centro de tudo, com todos os olhares postos sobre ele, simplesmnte desaparece como uma luz que se apaga lentamente...
E nunca mais foi visto ou se deixou ver.
O barulho do bonde 5, Bela Vista, corta o silencio da cidade que está quase toda dormindo.
Luzes do Martinelli, do Banco do Estado e dos hotéis da Praça da Bandeira, o neon das Sardinhas Coqueiro na r. Formosa, Dom Peixito acendendo e apagando, piscapiscando...
O Vaticano, o Geladeira, o Pombal e o Navio Ancorado, os cortiços maiores do Bexiga, em dois anos irão desaparecer...
Os despachos na Misericórdia continuarão até a morte de Mãe Jurema um ano depois...
Um dia após o desaparecimento de Manézinho, os jornais:
"A Hora" publica na primeira página: "Inexplicável: Largo da Misericórdia amanhece coberto de pipocas".
O Dia:"Centro da cidade cheirando à perfume! Largo da Misericórdia coberto de pipocas!"
O Correio Paulistano:"Autoridades da Central de Polícia do Largo do Tesouro afirmam que irão investigar o insólito acontecimento..."
O Estado de São Paulo:" Manobra diversionista do P.C. no centro da cdade..."

Não precisam acreditar no que foi narrado, mas São Paulo é uma cidade onde tudo pode acontecer, até o mais misterioso e inacreditável...
Saravá!


p/ Joaquim Ignacio de Souza Netto
 
 
 
 

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