1984, 1985, já se passou muito tempo dos fatos ocorridos.
Noite de Natal. Estou de plantão no Pronto Atendimento (P.A.) Municipal do Jd. Arpoador, um dos bairros/quebradas do Butantã nas bandas da Raposo Tavares. Como não poderia deixar de ser, faz frio, o posto está cheio de gente e os médicos ainda não chegaram para assumir seus plantões.
7:00h da noite.
Enquanto os "dotô" não chegam, nós, Enfermagem, vamos adiantando o expediente, preenchendo formulários, desarquivando prontuários, preparando as salas de curativos e pequenas cirurgias, conferindo as medicações de tarja preta, ouvindo reclamações e ameaças de depredação e espancamento o tempo todo, um ambiente ideal para quem gosta de viver perigosamente (P.A. de periferia não é bolinho, minha gente!).
- Êpa, chegou a dra. X; vou colocando as fichas e prontuários no consultório, que ela está estacionando o carro, "vamo-que-vamo"..., ainda bem que chegou alguém...
Vozerio no salão de espera:
- Chegou a 'dotora'... esses médico véve atrazado...
- Vai vê essa vaca 'tava' em argum motér da Raposo e perdeu a hora... eu conheço essa gente... essa gente num presta..., ainda mais uma médica gostosa dessa...
- Ô pessoar, si argum arguém docês mordê a língua morre envenenado...
A dra. X chega à porta do consultório:
- Senha nº 1, podentrá...
Aos poucos vão chegando o médico chefe do posto e a Dra Y e, então, o 'bonde' começa a andar...
11:00h da noite
O movimento caiu , bebuns foram atendidos e dispensados (... eu só vim prá tomar uma 'gricose' nos 'cano' e já vou imbora...), alguns casos de 'espirrose aguda', uma diarréia aqui e ali, um ou outro caso de 'esculhambose' na coluna ...(viu dotô, fui inchê uma lajia pro visinho e fudi co espinhaço! Tem jeito de dá um tranco prá pô o espinhaço no lugá?...), os hipocondríacos foram atendidos e medicados com drágeas de "substância G" (açúcar) e totalmente curados, sendo dispensados sem receita ou pedido de exames e com a recomendação de retornar no caso de os "sintomas" voltarem...
A Ceia de Natal já estava sendo preparada por nossas colegas de Enfermagem e pelas médicas e tudo levava a crer que seria deliciosa: cafe com leite, 3 "frangos à manivela" de padaria, algumas garrafas de guaraná e coca-cola e sanduiches de pão de forma com um patê de sardinha em conserva e maionese indusrial, um opíparo banquete (certa vez, numa das últimas entrevistas que Procópio Ferreira concedeu, êle usou esses termos - opíparo banquete - que, pessoalmente, eu achei pedante, deslocado do contexto da entrevista, não eufônico, demonstração do uso de uma falsa condição cultural; no Brasil, no sermo vulgaris, ninguém fala desse jeito e, só porque lembrei do nariz do Procópio, resolvi usar a frase)!
Não conseguimos celebrar o nascimento do Menino e, muito menos participar da ceia, aliás, não teve ceia de Natal porque naquela noitemadrugada, o 'couro comeu largado'... Quase meia noite, duas viaturas da PM descem, de ré, a rampa que leva à porta do P.A., sirenes explodindo em som, encrenca da braba! Macas e cadeiras de roda na porta! Dois casos: um homem com FAF (Ferimento por Arma de Fogo) e uma gestante em trabalho de parto.
- Anda, anda, depressa com as coisas, baleado na sala de curativos, o cara tá sangrando muito. Acho que algum vaso grande tá estourado, a subclávia talvez, orifício de entrada: região escapular direita, não há sinal de saída; no mínimo pneumotórax também, não dá prá nós cuidarmos aqui, curativo compressivo bem apertado, ambulância e HC, a dra. Y acompanha... e chama uma menina prá te ajudar com esse parto...
- 'Peraí', doutor! que conversa é essa de "me ajudar com o parto"? Eu nunca fiz um parto em toda minha vida...
- Vai se paramentar, calça as luvas, que hoje voce vai fazer o seu primeiro parto...
- Mas doutor...
- Que cazzo, Joaquinzão! O cara aqui tá sangrando muito, não dá prá mim largar prá partejar essa mulher... deixa de resmungar que nem velho... essa criança vai sair sózinha... o que não dá é prá por a criança de volta!
- Muito engraçado, doutor...
A mãe acabou dando a luz em pé e eu e a Marisa apenas aparamos a criança para que ela não caísse de cara no chão, o que, definitivamente, não seria um bom começo de vida numa noite de Natal. Mãe, nenê e placenta foram encaminhados para a (antiga) Maternidade da Lapa para término de procedimentos.
E o baleado? O que foi feito dele? Bem, essa é uma outra história absurda daquele Natal inesquecível: diminuido o sangramento, o paciente foi levado para o HC com acompanhamento da Dra Y e deve ter sobrevivido (pelo menos daquele tiro); minutos depois da saída da ambulância com o ferido, o PA foi invadido por um bando que, simplesmente, foi lá prá acabar com a vida do baleado... Ameaças, os consultórios e salas de procedimentos revirados, gritos, correrias, tiros para cima, debandada geral. Pulei uma janela e caí em cima do meu próprio carro (uma Brasilia sofrida). Entrei na Raposo voando baixo, uns 60 por hora... 03:00h da manhã, d. Odete espantou-se com minha chegada:
- Ué! liberaram você mais cedo? 'Tá tudo bem? Tudo bonitinho?
- 'Tá tudo bem...Feliz Natal...
- Prô 'cê também!
- Vamdormí que daqui a ouco eu pego no HC...
- 'Cê tá esquisito! Tá tudo bem, mesmo?
- 'Tá! Eu ajudei num parto...
- Gostou? Menino ou menina?
- Um menino, a mãe quer dar meu nome prá ele e eu disse que não, meu nome não cai bem prum recém-nascido, é nome de adulto...
- Que coincidência, heim?
- ???
- Natal, parto, menino, entendeu?
- Entendí, só que os Reis Magos chegaram atirando...
- Agora sou eu que não entendi...
- Não esquenta, depois eu te explico com mais calma...
- Tchau então, parteiro...
- Num enche, Dé! Vê se dorme... tchau!