Vamos falar um pouco sobre a camelotagem em São Paulo.
Para isso vamos passear um pouquinho pelo passado da cidade, ver como eram as coisas alguns séculos atrás e depois vamos voltar para o presente. Vamos viajar, eu e você se você quiser. Topa? Que bom! Então vamos lá!
Nao é brincadeira, nem exagero no que estou afirmando mas os camelôs já fizeram por merecer poesias, já foram poetados por muita gente, por repentistas nordestinos que fazem ponto no Largo de São Bento (camelôs da voz e da música), já foram interpretados por humoristas no rádio e na televisão, já se auto-glorificaram, chegaram até a ter associações sindicais, Billy Blanco falou sobre eles em sambas; alguns camelôs venceram na vida por sua simpatia, outros pela verve, muitos pela persistência e insistência para vender seus produtos.
E, já que eu falei em poesia, poemas e poetas, ouçamos Manuel Bandeira:
"OS CAMELÔS
Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam box
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma
Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
-"O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar
um pedaço de banana pra eu acender o charuto. Natu-
ralmente o menino pensará: Papai está malu..."
Outros, coitados, têm a língua atada.
Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo
[de demiurgos de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da me-
[ninice...
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma
lição de infância."
Quando o "Grande Tuberculoso" Manoel Bandeira poemisou essa homenagem aos camelôs dos anos 30s e 40s, a camelotagem como profissão, pelo menos para o povo da época, era uma profissão honrada e almejada por muitos, mas exercida por aqueles poucos que tinham o dom (dom, queda, jeitão, bossa...) da palavra e do convencimento para exercê-la.
UM PEQUENO DESVIO EM NOSSO RACIOCINIO MAS JÁ RETORNAREMOS AO ASSUNTO
Alguém: - Epa! Que desrespeito é esse?: Chamar o famoso poeta pernambucano de 'O Grande Tuberculoso'? Aonde nós vamos parar? Será que nem mesmo os mortos ilustres conseguem ser respeitados nesta Terram Papagalorum?
Eu: - "Peraí, meu!... Eu só estou fazendo minhas às palavras de Agripino Griecco, um defunto finíssimo, crítico literário, cronista, gramático, escritor de livros, que tinha uma certa idiosincrasia em relação ao poeta. Agripino chamava Manoel Bandeira de "tuberculoso profissional" , "O Grande Tuberculoso", ou dizia que "curar tuberculose na Suiça, até eu queria ser tísico", "só vou acreditar nessa tuberculose com o resultado do exame de escarro" ou "quando ele morrer quero ler o Atestado de Óbito", ou ainda, "desde 1917 que ele vem enchendo o saco com essa história de tuberculose...", porém, tudo poderia ser ou estar combinado entre os dois, vai saber, inimigos mortais é certo que eles não eram!
FEITOS OS ESCLARECIMENTOS QUE SE FAZIAM NECESSÁRIOS, CONTINUEMOS O QUE TÍNHAMOS PROPOSTO, O QUE É VERDADEIRAMENTE NOSSO ESCOPO
"- Nossa cidade de São Paulo sempre foi um campo de trabalho para a honrada classe dos camelôs e isso vem ocorrendo desde os tempos da colônia. Provas? Quer dar um passeio na ciade de São Paulo do passado? Quer? Ótimo! Então vamos dar um passeio pela atual rua da Quitanda nos primórdios do século X!X. Pronto? Vamos!
É de manhã, 9, 10 horas de uma manhã de sol. Saimos da Sé e seguimos pela rua do Rosário dos Homens Pretos em direção ao Mosteiro de São Bento. Rua sem calçamento e com uma série de casas de dois andares, janelas e portas fechadas, mas não olhe assim, descaradamente, para as janelas das casas. Por trás das venezianas estamos sendo observados... Percorremos uma distância pequena, 60 metros quando muito e entramos no Beco da Cachaça (que não se perca pelo nome); nos dias de hoje, o Beco da Cachaça corresponderia ao primeiro quarteirão da Rua da Quitanda, entre a XV de Novembro e a Álvares Penteado; é agora, preste atenção, olhe bem, estamos entrando na rua do Cotovelo ou rua Torta (em contraponto à rua Direita) que mais tarde, ainda neste seculo XIX vai se chamar oficialmente rua da Quitanda. Notou que é um trecho de rua bem movimentado, muita gente vendendo coisas? Cacofonia, gente apregoando seus produtos ao mesmo tempo:
- Olha a pamonha de milho verde! Quentinha, gostosa, sinhá...
- Amendoim torradinho, vai levá, Sinhá? Vai levá, Sinhô?
O tripeiro anunciando seus produtos fresquinhos:
- FíííígMcotó, FííííígMcotó (fígado e mocotó!)
E as negras de ganho vendendo suas quitandas: cocada branca e queimada, balas de côco, goiabadas na palha de milho, compotas, beijús, cabelos da anjos, doce de leite, torrões de rapadura, roletes de cana...
(QUITANDAS: são doces, compotas, bolachas... O termo 'quitanda' vem sendo usado no interior de São Paulo e Minas Gerais desde 300 anos atrás...)
A rua do Cotovelo, graças a seu comércio, diríamos que informal, passou a se chamar rua das Quitandas, dando origem à rua da Quitanda dos dias atuais... Ah, a influência dos camelôs no crescimento e desenvolvimento de nossa cidade! Quem diria heim?
Mas, agora, vamos avançar um pouco mais no tempo, até porque já estão nos olhando com desconfiança, inclusive aquele gendarme bigodudo postado ali na esquina com a rua de São Bento, ele não está com cara de bons amigos; avancemos, pois.
São Paulo, anos 1940s: coincidentemente o sol continua brilhando, o mesmo sol que brilhava na rua do Cotovelo no século passado. Grupo de pessoas curiosas em pleno Viaduto do Chá. Vamos nos aproximar. Olha lá! Um homem de terno, chapéu, engravatado, até que elegantemente trajado, falando e falando sem parar:
" ... senhores e senhoras, estou apresentando, pela primeira vez em São Paulo, esta moderna cidade, a maior invenção da ciência norte americana dos últimos anos: este incrível aparelho aqui na minha mão, é um amolador de facas, um abridor de latas e um cortador de vidros, tudo ao mesmo tempo; não é preciso prática nem habilidade! Qualquer pessoa pode se utilizar desse maravilhoso aparelho sem dificuldade, amolando facas em sua própria casa, abrindo aquela lata da goiabada que as crianças adoram, ou cortando vidro no tamanho que quiser para trocar uma vidraça quebrada, para cortar garrafas e, quem sabe, ganhar um dinheirinho fazendo e vendendo abajures e enfeites de mesa... Nas melhores casas do ramo, os senhores e senhoras iriam pagar 5.000$000 por essa maravilha. Aqui, comigo, o preço é de apenas 1.000$000. Um mil réis e nada mais, e ainda levam de brinde um pacotinho de barbatanas pra colarinho... Podem chegar, senhores, eu tenho um estoque grande dessa maravilha..., um aqui para o cavalheiro... a senhora vai levar? Isso madame, bota o seu marido prá amolar as facas, cortar vidros..."
Vamos caminhar mais um pouco; vamos até a rua Direita, até o Largo da Misricórdia. Mais um aglomerado, ali em frente ao chalé da Loteria Federal "A Quinela de Ouro", mais um camelô e sua conversa hipnotizante:
"... e essa pomada cura qualquer tipo de dor interna ou externa. Um produto feito pelos índios do Amazonas; a pomada que estou trazendo para os senhores é feita com o óleo extraido da gordura do poraquê, o peixe elétrico do rio Amazonas. A cura para suas dores vem de longe, do meio da mata fechada, feita pelos índios da tribo dos burubutangues, os únicos que sabem os segredos das curas... 300$000, trezentos réis aqui com o papai; na Drogasil, ali em frente, não adianta procurar que não vai achar, é um produto exclusivo que só eu estou autorizado pelo pagé a vender aqui em São Paulo... Trezentos réis a latinha e ainda leva uma amostra de perfume Chanel nº 5 para dar para a sua noiva ou noivo, esposa ou esposo... Vamos levar, cavalheiros, que está acabando... um aqui para o cavalheiro, a senhora vai levar 2? 2 eu faço por 500 réis... Vamos pessoal, que 'tá acabando..."
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Os camelôs eram pessoas/figuras simpáticas, reis da comunicaçao, falantes, bem humorados, mas estavam caminhando para a extinção, eles sabiam, a cidade sabia.
A partir dos anos 1970s os camelôs começaram a perder espaço para os "marreteiros" que montaram barracas, verdadeiras lojas que vendiam (vendem) de tudo, desde os produtos mais simples até ferramentas, eletro-eletrônicos - rádios, gravadores, TVs portáteis...- e, em alguns casos, até que frequentes, bebidas alcóolicas e entorpecentes (Na r. 7 de Abril com a Conselheiro Crispiniano havia uma pessoa com deficiência física que "vendia" frutas em uma carrocinha; até aí, tudo bem! No entanto, policiais descobriram que o "pobre" marreteiro comprava produtos roubados por "trombadões" que agiam na Barão de Itapetininga e Pça da República, além de vender "crack" para viciados da área...)
Pois é, camelôs, camelôs ali na batatolina, não existem mais. São Paulo sofreu um processo de caruarização que está difícil de resolver. Ruas e praças bloqueadas por marreteiros, pessoas andando no meio das ruas, disputando espaço com motos, carros e ônibus, porque as calçadas estão entupidas de barracas, de caixotes... Pelo menos os marreteiros não estão vendendo armas de fogo (será?), mas existem barracas no centro da cidade que vendem armas brancas, facas, punhais e coisas que tais...
Melhor voltarmos para os anos de 1930s, 40s, 50s, uma época melhor, quando nossa cidade era mais calma, mais limpa, quase sem violência, um tempo em que se podia andar pela cidade, parando aqui e ali para ver/ouvir os camelôs:
-... é o brinquedo ideal para as crianças de todas as idades. Direto dos Estados Unidos da Norte América, o brinquedo que agrada a todos, papai, mamãe, vovô e vovó... qualquer criança brinca e se diverte, não é preciso prática nem habilidade. Nas Lojas ds Dois Mil Réis o ioiô custa 1.500$000 réis, mas eu estou vendendo por apenas 500 réis... Vamos levar pessoal, 'tá acabando...
Sinceridade! Não dá vontade de ficar definitivamente neste passado? Seja sincero!
por Joaquim Ignacio de Souza Netto